segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Pichações no muro do hospital Emílio Ribas

Esta história parece ter se iniciado assim: a pichação que trazia os dizeres "Brasil Nazista", segundo comerciantes locais, teria sido feita há cerca de um mês. Esta frase tentava encobrir uma pichação anterior que ainda podia ser lida, "Por um mundo mais colorido", e alguns símbolos anarquistas. Ao que parece, a frase sobre o mundo mais colorido pode estar ligada a um movimento chamado de anarcopunks, este grupo contrariando o pré-conceito que muitos tem sobre o anarquismo e a cultura punk, pregam o combate ao racismo e à homofobia. Já a outra frase é provável ter origem de um movimento skinhead, denominado como white power, que traz como ideologia a supremacia de uma raça, no caso a branca, sobre as outras, ligados ao neonazismo. O encontro entre os dois grupos, invariavelmente, termina em confusão. Importante ressaltar também que nem todo grupo skinhead é homofóbico ou racista, cita-se como exemplo o grupo denominado como RASH (Skinheads Anarquistas e Comunistas), que informam no seu blog acreditarem "na igualdade de todos os seres humanos, sem bandeiras, sem separatismo, sem preconceito ou qualquer barreira, seja ela de classe, cor de pele ou orientação sexual".

Na última sexta-feira, 18 de novembro, o muro do hospital voltou a ser pichado com frases nazistas, os funcionários do hospital fizeram um mutirão para pintar o muro e apagar as frases. O fato destas ações se darem no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, talvez não seja tão ao acaso assim. O hospital é referência no tratamento de doenças infecciosas no país, incluindo a aids. Não é preciso ir muito longe para lembrar que a aids no começo da epidemia, início dos anos 80, estava muito associada de uma forma pejorativa aos homossexuais. Uma das mensagens pichadas era "Fora Bichas". Cito o texto do Calligaris que fala sobre algumas motivações para a homofobia. 

O problema talvez não seja pertencer a um grupo (seja ele qual for), mas sim, acreditar que a intolerância seja de fato uma bandeira a ser seguida.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Homofobia e Homossexualidade

Cena do vídeo Encontrando Bianca, parte do kit anti-homofobia não divulgado nas escolas

Por Contardo Calligaris 
Folha de S. Paulo - 10 de novembro de 2011.

Experiência mostra que indivíduos homofóbicos sentem excitação diante a de estímulos homossexuais

Desde o fim do ano passado, em São Paulo, assistimos a uma série de ataques brutais contra homossexuais ou homens que seriam homossexuais aos olhos de seus agressores.

No fim de 2010, por decreto da Presidência da República, foi estabelecida a finalidade do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (parte da Secretaria de Direitos Humanos).


Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como unidade familiar. Não me surpreende que uma explosão de homofobia aconteça logo agora, pois, em geral, o ódio discriminatório aumenta de maneira diretamente proporcional aos avanços da tolerância.

Funciona assim: quanto mais sou forçado a aceitar o outro como igual a mim, tanto mais, num âmago que mal reprimo, eu o odeio e quero acabar com ele. Mas por que eu preferiria que o outro se mantivesse diferente de mim? Por que não quero reconhecê-lo como igual? O termo de homofobia, inventado no fim dos 1960, designa, mais que um preconceito, uma reação emocional à presença de homossexuais (ou presumidos homossexuais), num leque que vai do desconforto à ansiedade, ao medo e, por fim, à raiva e à agressão.


Numa entrevista na "Trip" de outubro (http://migre.me/6563w), apresentei a explicação clássica da homofobia do ponto de vista da psicanálise: "Quando as minhas reações são excessivas, deslocadas e difíceis de serem justificadas é porque emanam de um conflito interno. Por que afinal me incomodaria meu vizinho ser homossexual e beijar outro homem na boca? De forma simples, o que acontece é: 'Estou com dificuldades de conter a minha própria homossexualidade, então acho mais fácil tentar reprimir a homossexualidade dos outros, ou seja, condená-la, persegui-la e reprimi-la, se possível até fisicamente, porque isso me ajuda a conter a minha'".


Exemplo: se eu sinto (e não quero sentir) atração por um colega de classe do mesmo sexo, o jeito, para me convencer que não sinto atração alguma, é chamar esse colega de veado, juntar um grupo que, como eu, odeie homossexuais e esperar o colega na saída da escola para enchê-lo de porradas.

Um amigo me perguntou se essa interpretação da homofobia não era sobretudo uma forma de vingança: você gosta de agredir homossexuais pelas ruas da cidade? Olhe o que isso significa: você mesmo é homossexual. Gostou? O amigo continuou: "Isso não é bonito demais para ser verdade?".


Pois bem, anos atrás, pesquisadores da Universidade da Georgia selecionaram 64 homens que (na escala Kinsey) se apresentavam como sendo exclusivamente heterossexuais. Todos foram testados por uma entrevista (clássica, o IHP) que estabelece o índice de homofobia, de 0 a 100. Com isso, foram compostos dois grupos: os não homofóbicos (IHP de 0 a 50) e os homofóbicos (IHP de 50 a 100).


Nota: chama-se pletismógrafo um instrumento com o qual se registram as modificações de tamanho de uma parte do corpo. Pois bem, todos vestiram um pletismógrafo peniano, graças ao qual qualquer ereção, até incipiente e mínima, seria medida e registrada. Depois disso, todos os 64 foram expostos a vídeos pornográficos de quatro minutos mostrando atividade sexual consensual entre adultos heterossexuais, homossexuais masculinos e homossexuais femininos.


À diferença do que aconteceu com o grupo de controle (ou seja, com os não homofóbicos), a maioria dos homofóbicos teve tumescência e ereção significativas diante dos vídeos de sexo entre homossexuais masculinos. Confirmando a interpretação da psicologia dinâmica: indivíduos homofóbicos demonstram excitação sexual diante de estímulos homossexuais.


Existe a possibilidade de que a excitação manifestada pelos homofóbicos seja efeito, por exemplo, de sua vontade de quebrar a cabeça dos protagonistas dos vídeos -existe, mas é remota (porque os 64 indivíduos da amostra passaram todos por um questionário que mede a agressividade, e ninguém se mostrou especialmente agressivo).


Para quem quiser conferir, a pesquisa, de Henry E. Adams e outros, foi publicada no "Journal of Abnormal Psychology" (1996, vol. 105, n.3), com o título "Is Homophobia Associated with Homosexual Arousal?" (a homofobia é associada à excitação homossexual?) e é acessível na internet: http://migre.me/656Z4.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

De tempos em tempos

  • Sócrates acreditava que a escrita acabaria com a memória das pessoas, além de enfraquecer a mente e o raciocínio;
Sócrates no leito de morte. 1787, Jacques-Louis Daivid
  • Na Europa da Idade Média, após o surgimento da imprensa de Gutenberg, alguns pensadores acreditaram que a difusão maciça de livros provocaria uma banalização da cultura;
A prensa inventada por Johannes Gutenberg no século XV
  • As primeiras transmissões via rádio no Brasil, com ópera, recitais de poesia, concertos e palestras culturais, serviam apenas à elite não se destinava às massas;
A Rádio Nacional foi criada em 1936
  • Quando a TV começou a se popularizar, especulava-se sobre sua tendência e gosto excessivo pelo espetáculo, apelo demasiado à emoção, desprezo pela cultura, exposição de múltiplas violências... Estas notas acabariam por alienar as pessoas;
O mal do século
  • Com o surgimento do videocassete acreditou-se que as salas de cinema ficariam vazias;
Propaganda da Philco nos anos 80
  • A internet é acusada de deixar as pessoas mais burras e com baixa concentração;
Revista Galileu nº 229 - Agosto/2010

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O Fantasma

Sujeito, objeto e coisa são conceitos distintos, certo?! Essa noção se intensificou no pensamento filosófico, sobretudo a partir de Kant. A coisa não é uma coisa para ninguém. O objeto por outro lado, apela para um sujeito. O termo objeto quer dizer, aquilo que é colocado diante, e consequentemente, aquilo que afeta os sentidos. Essa ideia exige um correlato, aquele que é afetado pelo objeto, deixa o sujeito numa posição de aquele que é subordinado. Lacan vai subverter esse termo, uma vez que, para ele o sujeito da psicanálise é um sujeito barrado, subordinado ao significante, representado na cadeia significante sem nela figurar. Temos ouvido, com uma certa frequência até, que o sujeito do inconsciente é incompleto, marcado por uma falta e que isso produz angústia. Num sentido clássico, o sujeito é um sujeito do conhecimento e o objeto, aquele a ser conhecido.

Lacan vai propor uma fórmula para dar conta dessa relação particular do sujeito com o objeto à qual chamará de fórmula do fantasma:


Para Lacan, o fantasma é justamente isso que "enquadra" a relação do sujeito com a realidade, com seus objetos. Em Freud, temos um fantasma como um cenário imaginário que dramatiza (deformado pelas defesas) a realização de um desejo inconsciente. Nessa concepção o fantasma é simultaneamente a expressão de um desejo recalcado e o protótipo dos desejos atuais conscientes ou inconscientes do sujeito. Complicando um pouco mais, em Lacan, o fantasma tem um pé na linguagem, digamos assim, ao mesmo tempo em que é Imaginário, é também Simbólico que recobrem o Real. A fórmula mostra como o fantasma pode velar a divisão do sujeito e dar seu "quadro" à realidade. A partir do momento em que está na linguagem o sujeito só pode recorrer a linguagem para tentar reencontrar esse objeto, perdido justamente por causa dela.

A fórmula proposta por Lacan pode ser lida da seguinte forma: sujeito barrado punção de a, ou mais posteriormente, sujeito barrado desejo de a. A noção de objeto a (leia objeto pequeno a) é o que permite articular o fantasma. Nas Confissões, de Santo Agostinho, encontramos uma referência usada como encarnação do objeto a para aquele que olha uma imagem de completude, no trecho o santo evoca o ciúme sentido frente à visão de uma criança sugando o seio da mãe. Lacan elege o sinal de punção estrategicamente, em francês é poinçon, significando um ato, processo ou efeito de furar com um instrumento dotado de ponta e também, um instrumento pontiagudo usado para fazer furos ou gravações. Este símbolo se presta a várias operações: o ˆ é o sinal de conjunção; a parte inferior, ou seja, o sinal ˇ refere-se à disjunção; a visão lateral esquerda, < indica menor que; já a visão lateral direita, o sinal >, maior que.

Esses objetos aparecem ligados à relação do sujeito com a questão fálica, o objeto é o que suporta o sujeito no momento em que ele precisa fazer frente à questão de sua existência. Se o objeto a é a primeira perda do sujeito, aquilo que em algum momento instaurou a incompletude, é justamente essa a marca na linguagem. Ao recorrer às palavras percebe-se que estas falham, não podem dizer tudo. Nesse momento de pânico, é ao objeto do desejo que o sujeito se agarra. Lacan usa o exemplo da peça de Molière, O Avarento e sua relação com seu cofre. Na peça o desejo manifesta-se na retenção de um objeto que não dá outro gozo senão o de ser suporte de desejo, na medida em que o retém, o guarda. O cofre garante a permanência do desejo e cumpre uma função causal, uma outra leitura do objeto a é objeto causa do desejo. A questão é que estes objetos, constantemente reencontrados em substitutos não são objetos plenamente satisfatórios, aquele da primeira satisfação. Assim, podemos inferir que, esse objeto encontrado não é o objeto desejado. O sujeito é remetido de objeto em objeto, e o objeto a  é o que causa o desejo, muito mais do que aquilo que ele visa. Percebem de onde vem a angústia ao nos depararmos com a incompletude daquilo que tomamos como causa do nosso desejo? Não à toa, a frase usada pela Santaella em aula foi de que a análise é a travessia do fantasma.

VANIER, Alain. Lacan / Alain Vanier; trad. Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. (Figuras do saber; 13).
CALLIGARIS, Contardo. Hipótese sobre o fantasma na cura psicanalítica. Porto Alegre:  Artes Médicas, 1986.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Do lado de dentro ou do lado de fora?

Ontem assisti uma aula que não sei muito bem dizer sobre o que. Bom, teve um filme chamado A Quarta Guerra Mundial - The Fourth World War (2003), que de uma forma bem resumida trata sobre a luta mundial contra a opressão do neoliberalismo. Nesta guerra onde os protestos são contra as diversas formas de opressão, imposição, desrespeito aos direitos humanos, o que se busca é a não-alienação do sujeito.

Por alienação podemos considerar o conceito que vai de Hegel à Marx e que se liga ao trabalho. Hegel dizia que o trabalho é a essência do homem, é através do trabalho que o sujeito pode realizar plenamente suas habilidades em produções materiais. Marx achou interessante o fato de Hegel considerar a transformação do pensamento puro em pensamento sensível, visando uma realização material na forma de trabalho, fazendo do homem um ser alienado (aqui num sentido positivo), separado da essência pura abre-se caminho para a separação entre ideal e real. Este pensamento se encaixou muito bem nas relações sociais do capitalismo (em Marx num sentido negativo), em que os trabalhadores eram explorados nas fábricas e deixavam seus patrões cada vez mais ricos, ao passo que os tais trabalhadores ficavam cada vez mais pobres. Entretanto, não vou me atrever a continuar falando de Marx ou Hegel, só quis ilustrar a alienação. Quando vemos um protesto, uma greve, uma manifestação, temos uma tentativa de se sair da condição de alienado?

Bom, voltando à aula. Vou tentar descrever a situação, claro que segundo a minha opinião. Perdi a introdução antes do filme, cheguei quando este se iniciava. Não muito além de uma hora de vídeo, passamos do filme à uma exposição de alguns conceitos como design social, Primavera Árabe, e três pontinhos. O que me chamou a atenção foi a) o fato da aula continuar após o filme sem um intervalo, fato que 99,9% das vezes ocorre em outras aulas, b) após algumas questões levantadas em sala notei um certo "autoritarismo do saber" - notem que usei as aspas justamente para ressaltar que esta é a minha posição, por parte do que chamaremos aqui de professor e, c) tudo isso se deu após um filme que denunciava justamente este comportamento autoritário. Fiz alguns comentários após a aula com alguns amigos sobre esta postura, perguntei se no início havia sido dito que não haveria um intervalo, responderam que não. Sem criar polêmicas com o intervalo até porque eu não vou tomar café, comer algo ou ir ao banheiro, mas porque gosto do bate-papo deste momento.

GOFFMAN E AS INSTITUIÇÕES TOTAIS

Contudo, chego agora - e só agora! onde queria chegar. Me lembrei de um autor que li na época da faculdade chamado Erving Goffman, professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, que escreveu Manicômios, Prisões e Conventos (2001). Neste livro Goffman vai formular os conceitos de “instituição total”, de “carreira moral” e de “vida íntima da instituição”. Existem alguns mecanismos de estruturação de uma instituição que acabam determinando a sua condição de instituição total e consequentemente, promovem interferências na formação do eu do indivíduo que participa desta instituição. O termo "total" da instituição se dá por sua tendência a um "fechamento", ou seja, as pessoas ao inserirem-se numa instituição social passam a agir num mesmo lugar, com um mesmo grupo de pessoas sob tratamentos, obrigações e regras para a realização de atividades impostas. Quando esta instituição social se organiza para atender seus internos em situações semelhantes, separando-os da sociedade de um modo mais amplo por um período de tempo e impondo-lhes uma rotina fechada, temos aqui as condições para o que Goffman chamou de instituição total.

Um conceito importante nesta obra é a "mortificação do eu", quando um interno chega a um hospital ele sofre uma supressão da concepção de si mesmo e da cultura que traz consigo, há um despojamento de seu papel na vida civil que deve agora ser obedecido através das regras de conduta da instituição. Se um padre ou um músico cairem doentes no leito de um hospital, sua vida social não interessa à instituição que agora os considera "pacientes", estas ações fazem com que se perca o conjunto de identidade levando-os a uma reorganização pessoal. Estes mecanismos geram um ambiente que causa no sujeito a sensação de fracasso, um sentimento de que o tempo de internação é perdido, mas que necessita ser cumprido e esquecido, além de uma angústia diante da ideia de retorno à sociedade. O processo de internação é caracterizado pelo autor através da "carreira moral", que passa por fases de abandono, desejo de anonimato, passando por uma fase de aceitação onde o interno considera esta condição como parte essencial para sua cura, criando uma sensação de impotência. Para isto, as instituições totais criam ajustamentos através de regras de conduta e padrões que norteiam o bem estar, valores, incentivos e sanções para seu internado, o que Goffman nomeou como a "vida íntima da instituição".

UM PANORAMA ATUAL

Esta vida reclusa numa instituição total não é privilégio apenas das prisões, conventos e manicômios, vemos várias outras instituições assumirem este mesmo caráter de fechamento e de mortificação do sujeito. Nesse novo apanhado situam as escolas, os hosptais, casas de repouso, abrigos, a religião, muitas ONGs e muitas outras instituições, que sempre levam o sujeito a uma despersonalização. Um fato curioso é que estas instituições vem a produzir justamente aquilo que deveriam combater, assim os hospitais que deveriam lutar contra as doenças e promover a saúde, têm produzido outras tantas questões que também são enquadradas sob a forma de adoecimento. Só para citar como exemplo: 
  • Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP) a cada 100 alunos que ingressam na escola na 1ª série, somente 5 concluem o ensino fundamental. Em 2007, 4,8% dos alunos matriculados no ensino fundamental e 13,2% matriculados no ensino médio abandonaram a escola. Além das condições socioeconômicas, culturais ou geográficas um dos motivos diz respeito ao encaminhamento pedagógico e a baixa qualidade do ensino nas escolas (http://www.infoescola.com/educacao/evasao-escolar/);
  • O estudante M. L. S. de 18 anos, disse que foi agredido com uma pistola por um segurança da Igreja Universal do Reino de Deus de Taubaté (SP) enquanto usava um banheiro da igreja. Ao sair do local, ainda machucado, pediu socorro em uma base móvel da Polícia Militar mas os policias disseram que era para ele resolver o caso na igreja (http://www.fontegospel.com.br/?p=55043);  
  •  O Vaticano reforçou que os casos de padres pedófilos devem ser denunciados "sempre" à autoridade civil e que, ...
Acho que basta! Claro que existe também ótimos resultados em todas estas instituições, uma colega de trabalho conta que foi premiada este ano pela rede de ensino como professora revelação. Esta mesma educadora é responsável por uma oficina de videogames em uma ONG, entre as discussões com as crianças fica o destaque para o tema violência. Por outro lado, nosso referido professor pode dizer que as fontes das informações citadas acima manipulam os dados a seu favor. Não preciso destes dados para saber que uma parte considerável de jovens está descontente com as escolas, apresentam dificuldades de interpretação de textos, que no hospital meu tio se chamava Paciente do Leito 14, e que a igreja acredita nos direitos humanos, desde que ele não seja gay... Também posso dispensar as referências para suspeitar de uma aula que se atreve a denunciar o autoritarismo e a alienação, mas deixa de ouvir o que os "depositários" tem a dizer. 

ESTAMOS CONFORMADOS?

Ainda não havia aplicado (ou pensado) no conceito exposto acima, ou seja, de que muitas instituições acabam produzindo aquilo que deveriam combater, em pessoas. Mas parece que minha última aula não deixa dúvidas. O pior e, provavelmente a causa de tamanho texto é admitir que fiquei em silêncio, que permaneci na mais sublime posição de alienado... Se o conceito pode ser aplicado ao professor, pode também ser aplicado à mim.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O sentido faz falta?

Por Contardo Calligaris em 06/10/2011
 
A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto

É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido -muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
 
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
 

Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
 

Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
 

Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
 

Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
 

Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
 

Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
 

A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
 

Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
 

Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
 

O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
 

Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".

A sensação do século

Cena do filme "Gamer": Shaviro mostra como a tecnologia que produz as obras se reflete nelas; por exemplo, como o cinema de ação está ficando parecido com jogos eletrônicos

Por Diego Viana | De São Paulo


Uma pergunta estranha, mas bastante atual, é o ponto de partida para o livro "Post-Cinematic Affect" (Zero Books, 200 págs., R$ 13,57), do crítico cultural americano Steven Shaviro, da Wayne State University: "Qual é a sensação de viver no começo do século XXI?" Já nos anos 1950, o teórico da mídia canadense Marshall McLuhan demonstrou que mudanças nos meios de produzir e se comunicar alteram também "as proporções dos sentidos". McLuhan se referia ao advento da televisão, mas hoje os novos meios são muitos. Não só as tecnologias de computação em rede influem na vida contemporânea, mas também os celulares, o sistema financeiro globalizado, o comércio por grandes cargueiros guiados por GPS e a possibilidade de gerir informaticamente os estoques. As consequências, para o autor, são "mudanças massivas na sensação de estar vivo". São "mudanças de humor, sensibilidade, modos de atenção e memória", imperceptíveis no dia a dia, mas detectáveis por outros meios.
Shaviro parte da premissa de que é difícil conhecer as particularidades do tempo em que se vive. Para entendê-las, é preciso examinar a produção cultural. "São mudanças tão novas e tão pouco familiares que mal temos vocabulário para descrevê-las." O exame permite enxergar como o público se relaciona com suas estrelas, como a tecnologia que produz as obras se reflete nessas obras e como uma mídia influencia as demais - por exemplo, como o cinema de ação vai se tornando parecido com jogos eletrônicos. Shaviro cita o filme "Videodrome", de David Cronenberg (1983), em que o personagem Brian O'Blivion [um trocadilho com "oblivion", o completo esquecimento] afirma que "a batalha pelas mentes será lutada na arena do vídeo".
Estendendo a afirmação aos meios do século XXI, Shaviro diz que a mídia é o campo de batalha porque é, ao mesmo tempo, parte do aparato de produção, uma ferramenta para gerar e modular a subjetividade e um instrumento de comunicação que atravessa as conexões e desconexões entre indivíduos e comunidades. "Há lutas sobre o conteúdo e as formas; questões sobre quem as possui, quem pode falar por elas, a quem se dirigem, como estão distribuídas, o que implicam."

A disciplina da escola, o ritmo da fábrica e a rigidez familiar deram lugar a exigências de adaptação rápida e ocupações fluidas

É bem sabido que o cinema começou a perder sua posição central na cultura com o advento da televisão, nos anos 50, e a própria televisão passou a ceder espaço no fim dos anos 90 para mídias digitais. Mesmo assim, o livro examina quatro obras, todas feitas para o cinema ou a televisão. "Gamer", de Mark Neveldine e Brian Taylor (2009), "Traição em Hong Kong", de Olivier Assayas (2007), e "Southland Tales, o Fim do Mundo", de Richard Kelly (2006), são filmes para a tela grande. "Corporate Cannibal" é o videoclipe de Nick Hooker para a canção de Grace Jones (2008).
Para Shaviro, mais do que examinar diretamente as novas mídias, é preciso entender como elas modificam as que já existiam. Ele se apropria de um termo do sociólogo Raymond Williams, "estruturas de sensação", para se perguntar como os filmes do século XXI dão voz a "uma sensibilidade ambiente e flutuante". Entender essa sensibilidade é conhecer a sensação de viver no início do século XXI. O autor cita a trilogia "Atividade Paranormal" (2007, 2010 e 2011), em que, segundo ele, a sensação de terror advém da ruptura das relações de tempo e espaço. Quando forças demoníacas perturbam o sono dos protagonistas, submetendo-os a novos "ritmos temporais de terror e antecipação", os humanos tentam afastar as forças do mal usando tecnologias como computadores portáteis e câmeras digitais para restabelecer a ordem. "São as mesmas tecnologias que produziram os filmes", observa Shaviro. A tecnologia, assim, é o principal vínculo entre as famílias humanas e o "outro lado". O enredo sugere um entendimento de como as tecnologias digitais carregam consigo as relações sociais e de produção implicadas em sua invenção e seu uso.
O capítulo sobre "Traição em Hong-Kong" introduz uma reflexão sobre o estrelato. Em "O Rosto de Garbo", o semiólogo francês Roland Barthes marcou a diferença entre o estrelato da sueca Greta Garbo (cujo auge foi nos anos 30) e o da inglesa Audrey Hepburn (auge nos anos 60). Shaviro compara as estrelas de outrora a Asia Argento, de "Traição em Hong Kong", uma "estrela pós-cinemática". Barthes descreve o rosto de Greta como uma figura de beleza essencial, "descida de um paraíso onde as coisas são formadas na mais clara das luzes". Já o rosto de Audrey não é uma essência, mas uma figura individualizada, um "estrelato modernista". Asia, para Shaviro, é um novo tipo de estrela, "imanente e corporificada". Para Barthes, "o rosto de Garbo é uma Ideia, o de Hepburn é um evento". Shaviro argumenta que o rosto de Asia Argento não é nenhum dos dois, mas uma superfície em branco, "sobre a qual todos os afetos podem atuar ao mesmo tempo, mesmo os contraditórios".
A ideia da superfície em branco ajuda a entender por que o início de século é caracterizado por noções como fragmentação, imediatismo, virtualidade, atenção estilhaçada e "a sensação alucinante de que as coisas são mais intensas no curto prazo e têm menos seguimento no longo", diz o autor. Escrevendo sobre o videoclipe de "Corporate Cannibal", Shaviro observa que o diretor trabalha com os extremos do preto e branco, criando um fundo simples sobre o qual produz uma série ilimitada de modulações da imagem de Grace Jones. A modulação é tecnológica, sublinha o autor. Hooker usa programas de computador para reproduzir o rosto e o corpo de Grace Jones em uma infinidade de variações, a partir de uma matéria-prima também técnica (porque obtida pela eliminação de todas as tonalidades cromáticas), mas simplificada até o máximo possível. A modulação, diz Shaviro, precisa dessa base fixa para se manter sob controle e, com isso, "aconteça o que acontecer, as variações podem ser capturadas e neutralizadas".
Shaviro aproxima a noção de modulação e o imperativo da flexibilidade, com seus corolários "adaptabilidade" e "versatilidade", nos mercados de consumo e trabalho do início de século XXI. Ao contrário do que ocorria no século XX, dominado pela produção industrial de caráter fordista, os moldes fixos são rejeitados pela subjetividade contemporânea. A disciplina da escola, o ritmo do chão de fábrica, a rigidez familiar, tudo isso ficou para trás e deu lugar a exigências de adaptação rápida, produtos individualizados e ocupações fluidas. O videoclipe de Grace Jones explora essa variabilidade nas últimas consequências.
Para resumir o vínculo estreito que descobre entre os processos de produção dos bens culturais e a própria sensação de pertencer à cultura contemporânea, o autor evoca uma frase do poeta francês Stéphane Mallarmé: "Tudo se resume à estética e à economia política". As obras estéticas, segundo Shaviro, ajudam a revelar com um pouco mais de clareza o mundo onde vivemos e as dificuldades que enfrentamos. Mais do que isso, permitem imaginar alternativas. Por isso, explica o autor, a ficção científica é um gênero particularmente interessante, porque se preocupa não em prever o futuro, mas em extrapolar futuros a partir do presente, "para trazer à luz tanto seus potenciais quanto seus perigos".

Viagem do ponto na frase

Um amigo compartilhou sua análise sobre uma foto (neste link) e, como pediu minha opinião, não pude evitar prestar atenção em um erro de digitação acidental, digamos assim, para evitar possíveis constrangimentos, ou maiores manifestações de cunho persecutório. Seu erro foi notado nesta frase:

"A vida surge para acabar, ela sabe disso .E com as mãos impostas quase em oração, segura uma caneca para a qual mira fixamente o lado de dentro."

Como sabemos quando uma frase termina? Não é uma questão existencial, ou talvez seja (atualmente, ou tudo é, ou nada é). Podemos começar uma frase usando um olá, era uma vez, cordial Sr., invariavelmente deve começar com uma letra maiúscula. Assim teríamos um Olá, Era uma vez, Cordial Sr.. A primeira letra da frase se marca pela diferença dentre as demais, neste caso seu tamanho difere do restante da frase. Em alguns livros, ou revistas, ou... enfim, sua marca diferencial é notavelmente gritante. Pensem no "E" de Era uma vez, quando este vem num estilo de letra mais elaborado, ocupando às vezes, tantas linhas do parágrafo. Desta forma, quando nos deparamos com um caso desses sabemos que ali tem início uma ideia, um raciocínio, uma divagação, uma análise, uma verdade ou uma mentira (depende do seu posicionamento filosófico), mas e quando isto termina?

Com certeza o fim não é marcado pela mesma característica do início, fato que constatamos em nossas leituras, pois não vemos uma letra diferenciada no final das frases. Provavelmente, um ponto de vista da gramática, costume, regra, ou ainda, uma analogia com um certa filosofia ocidental que evita a todo custo admitir sua finitude. Não tenho capacidade para afirmar, portanto, só posso questionar: em outras culturas a última letra da frase é maiúscula? Caso a resposta seja não, a questão sobre o fim é universal.

Não poderíamos usar a mesma regra do início para marcar o fim, são diferentes na vida, são diferentes na gramática. Bom, e quanto à questão inicial: como sabemos quando uma frase termina? Vamos olhar de novo a frase que meu amigo usou para iniciar seu texto: "A vida surge para acabar, ela sabe disso ." Notaram qual foi o erro? Não?! Leia de novo. Pronto! ou deveria dizer: Ponto! O ponto da frase que deveria marcar seu fim está no início da frase seguinte. Vou ilustrar a importância do ponto no final da frase com um exemplo: "Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude." (Borges, 2001, p.92). Para determinar o término da frase usamos o ponto. Se mudarmos este ponto a frase muda também, inclusive seu sentido, "Como todos os homens da Biblioteca, viajei."; "Como todos os homens da Biblioteca."; "Como todos os homens."; "Como todos."; "Como.".
Foi um erro de digitação, muitos dirão numa tentativa angustiante de justificar o erro. Mais uma vez, chegamos a outra questão atual, parece que as justificativas sobre nossos erros, que quase sempre geram angústias, são inesgotáveis, e ao mesmo tempo insuficientes. Por serem insuficientes, não justificam o erro, gerando novas angústias (tautologia, concordo!). Voltemos à frase, então. Talvez tenha sido ironia esta situação se dar justamente numa frase que fala sobre a morte. Na tentativa de afirmar a existência da morte marcando a inexistência do sujeito, a frase falha, pois não termina onde deveria, ou seja, no ponto. Este fica para iniciar a frase seguinte, conceito embutido pelas religiões, sob o discurso de que a morte é a entrada para uma outra vida. Provavelmente, o erro não tivesse se dado se a frase terminasse em acabar, assim os iis teriam seus pingos. O texto começaria falando sobre o início da vida. A frase que falaria sobre a morte terminaria na palavra acabar. O problema se deu em admitir um saber: ela sabe disso. Pode até ser que ela saiba e que, de alguma forma, nós todos sabemos que o dia derradeiro chegará. Mas, tentamos a todo custo não saber. Assim, podemos continuar errando, e justificando estes erros sem fim. Quando justificamos um erro tentamos produzir um acerto. Ao acertar aquilo que é falhado não se revela, ficamos menos angustiados e seguimos esperando o famoso fim das histórias que se iniciam com Era uma vez..., e viveram felizes para sempre.

Corrigiria a frase se este fosse o caso, mas como ela revela algo a mais, prefiro deixar como está. Afinal, "a vida surge para acabar, ela sabe disso ."

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

É um chapéu!

Certa vez, me perguntaram sobre alguma sugestão para se avaliar pessoas que vão trabalhar com crianças. Não lembro o que respondi na época, talvez algo sobre o que fazer com o choro das crianças, ou alguma coisa teórica... Se eu tivesse que responder a essa pergunta hoje minha sugestão seria esta:

Descreva o que você vê na figura a seguir:


Para quem entendeu a questão ou respondeu corretamente pode parar a leitura aqui, caso não, ofereço um pouco de contexto:



"Certa vez, quando tinha seis anos, vi num livro sobre a Floresta Virgem, 'Histórias Vividas', uma imponente gravura. Representava ela uma jibóia que engolia uma fera. Eis a cópia do desenho.
Dizia o livro: 'As jibóias engolem, sem mastigar, a presa inteira. Em seguida, não podem mover-se e dormem os seis meses da digestão.'
Refleti muito então sobre as aventuras da selva, e fiz, com lápis de cor, o meu primeiro desenho. Meu desenho número 1 era assim:


Mostrei minha obra-prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes fazia medo.
Responderam-me: 'Por que é que um chapéu faria medo?'
Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jibóia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jibóia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações. Meu desenho número 2 era assim:



As pessoas grandes aconselharam-me deixar de lado os desenhos de jibóias abertas ou fechadas, e dedicar-me de preferência à geografia, à história, ao cálculo, à gramática. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma esplêndida carreira de pintor. Eu fora desencorajado pelo insucesso do meu desenho número 1 e do meu desenho número 2. As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando.
Tive pois de escolher uma outra profissão e aprendi a pilotar aviões. Voei, por assim dizer, por todo o mundo. E a geografia, é claro, me serviu muito. Sabia distinguir, num relance, a China e o Arizona. É muito útil, quando se está perdido na noite.
Tive assim, no correr da vida, muitos contatos com muita gente séria. Vivi muito no meio das pessoas grandes. Vi-as muito de perto. Isso não melhorou, de modo algum, a minha antiga opinião. 
Quando encontrava uma que me parecia um pouco lúcida, fazia com ela a experiência do meu desenho número 1, que sempre conservei comigo. Eu queria saber se ela era verdadeiramente compreensiva. Mas respondia sempre: 'É um chapéu'. Então eu não lhe falava nem de jibóias, nem de florestas virgens, nem de estrelas. Punha-me ao seu alcance. Falava-lhe de bridge, de golfe, de política, de gravatas. E a pessoa grande ficava encantada de conhecer um homem tão razoável."
(Antoine de Saint-Exupéry)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Análise do discurso e Análise do eu

Quando se pensa em analisar algo, acaba-se caindo no seguinte problema, deve-se analisar o discurso sem levar em conta aquele que diz, ou então é necessário analisar somente o eu. Num texto do Lacan (1986) chamado Análise do discurso e Análise do eu (O Seminário, Livro 1 - Os escritos técnicos de Freud), podemos perceber quais podem ser os enganos cometidos nestas análises. Lacan vai discursar sobre dois casos analisados por Anna Freud e outro por Melanie Klein.

É muito difícil definir o eu como uma função autônoma, sabendo que esta metodologia segue o eu caracterizando-o por um bifuncionamento, por uma splitting (divisão), ao mesmo tempo em que se toma o eu como um mestre de erros, sede das ilusões. Anna Freud em seu livro O Eu e os Mecanismos de Defesa (1946), trata o eu como se este fosse um homenzinho que está dentro do homem, tendo uma vida autônoma dentro do sujeito estando ali para defendê-lo, na análise, sustenta a autora, o eu só se manifesta pelas suas defesas, ou seja, na medida em que se opõe ao trabalho analítico. Lacan vai dizer que a função dinâmica do eu no contexto analítico permanece contraditória, justamente por não ter sido rigorosamente situada.

Num estudo de caso que trata das resistências do eu, Anna Freud conta que o comportamento de sua paciente no início da análise é amigável e franco, mas que esta evita cuidadosamente nos relatos aludir ao seu sintoma, deixando passar em silêncio as crises de ansiedade que tem no intervalo das sessões. Quando a analista tenta fazer o sintoma entrar na análise ou interpretar a ansiedade, o comportamento amigável da paciente se modifica. Nesses momentos a paciente descarrega na analista discursos irônicos e de sarcasmos que a desconcertam. "Entretanto, uma análise mais aprofundada mostra, em seguida, que zombaria e caçoada não constituem, para falar propriamente, uma reação de transferência e não estão de modo algum ligados à situação analítica. A paciente recorre a essa manobra, dirigida contra si mesma, cada vez que sentimentos de ternura, de desejo, ou de ansiedade estão para surgir no consciente.", relata Anna Freud. Para a autora, a técnica que se impõe neste caso é a de analisar a defesa da paciente contra seus afetos e em seguida estudar a sua resistência na transferência.

Lacan vai dizer que neste caso a necessidade de analisar a defesa do eu, trata-se de um erro. Anna Freud tomou as coisas pela relação dual entre ela e a doente. Tomou a defesa da paciente por aquilo através do qual se manifestava, uma agressão contra ela (Anna Freud). É no plano do eu dela (Anna Freud), é no âmbito da relação dual com ela (Anna Freud), que percebeu as manifestações da defesa do eu. A manifestação da transferência segue a fórmula que faz da transferência a reprodução de uma situação. Justamente, por não oferecer como esta situação é estruturada é que esta fórmula torna-se incompleta. Assim, a análise não pode progredir, pois não deveria ter distinguido a interpretação dual, onde entra a rivalidade de eu a eu (analista e analisando). Freud nos diz que é a conclusão de um pacto que define a entrada na situação analítica, o eu do paciente promete a livre disposição de tudo que a sua autopercepção lhe entrega. Do outro lado, é assegurado a maior discrição e colocado ao seu serviço a experiência do analista na interpretação do material submetido ao inconsciente. Quando se caminha rumo à descoberta do inconsciente, o que se encontra são situações estruturadas, organizadas, complexas. Freud deu o primeiro modelo através do Complexo de Édipo. Todo o desenvolvimento da análise é feito pela valorização sucessiva de cada uma das tensões implicadas nesse sistema triangular. Nisto reside um caráter profundamente dissimétrico em cada uma das relações duais que compreende a estrutura edipiana, a relação que liga o sujeito à mãe é diferente da que liga ao pai, assim como a relação narcísica ou imaginária com o pai é diferente da relação simbólica, e também da relação que Lacan chama de real. Este esquema deve ser mantido como essencial, pois ele é fundamental, não somente para toda compreensão do sujeito, mas também para toda realização simbólica, pelo sujeito, do inconsciente.

"É a reconstrução analítica que o sujeito deve autenticar", afirma Lacan. E esta reconstrução não é baseada na integridade da memória, mas é com o auxílio de vazios que a lembrança deve ser revivida. O real, ou o que é percebido como tal, é o que resiste absolutamente à simbolização. Certas interpretações (do conteúdo) não são simbolizadas pelo sujeito. Manifestam-se numa etapa em que não podem lhes dar a revelação de qual é a sua situação nesse domínio interditado que é o inconsciente, estando ainda no plano da negação da negação. Algo dessa ordem está para além do discurso e necessita de um salto no discurso, o recalque não pode desaparecer simplesmente, só pode ser ultrapassado. Àquilo que Anna Freud chama de análise das defesas contra o afeto é uma etapa da sua própria compreensão e não da compreensão do sujeito. Ao acreditar que a defesa do sujeito é uma defesa contra ela isso permite com que possa analisar a resistência da transferência. Isto leva a alguém que não está lá. O ponto de vista de Anna Freud é intelectualista, e a leva a formular que a análise deve ser conduzida a partir de uma posição mediana, moderada, que é a posição do eu. Para Lacan, o contexto da análise é reconhecer que função assume o sujeito na ordem das relações simbólicas que cobre todo o campo das relações humanas.

Uma outro estudo sobre um caso analisado por Melanie Klein (The Importance of Symbol-Formation in the Development of the Ego - 1930), Lacan vai apontar que Klein "enfia o simbolismo, com a maior brutalidade no pequeno Dick!". Ela o joga numa verbalização, um tanto quanto, brutal do mito edípico - Você é o trenzinho, você quer foder a sua mãe. A falta de contato do pequeno Dick se dá pelo simples motivo de que seu ego ainda não está formado. Para Melanie Klein, Dick se distingue dos neuróticos, na sua indiferença, na sua apatia, na sua ausência. Com efeito, o que nele não é simbolizado é a realidade. O mundo humano é um mundo infinito com relação aos objetos, a esse respeito, Dick vive num mundo não-humano. No consultório de Klein, não existe para ele nem outro nem eu, há uma realidade pura e simples. Os trens e tudo que se segue é, sem dúvida, alguma coisa, entretanto é algo que não é nem nomeável, nem nomeada, pois não pode nem mesmo chegar à primeira espécie de identificação, que já seria um esboço de simbolismo. Dick não apenas está na realidade, mas vive na realidade. De acordo com Lacan a relação entre Klein e Dick se manifesta da seguinte forma, "ele está lá como se ela não existisse, como se fosse um móvel. E, entretanto, ela lhe fala." Normalmente, o sujeito atribui aos objetos de sua identificação primitiva uma série de equivalências imaginárias que multiplicam seu mundo, ou seja, traça identificações com certos objetos, retira-os, refaz com outros. Cada vez, a ansiedade interrompe a identificação definitiva, a fixação da realidade. Estas voltas vão emoldurar a esse real infinitamente mais complexo que é o real humano. Para Dick a realidade está bem fixada, vinda ao longo do qual as fantasias são simbolizadas, mas porque ele não pode fazer essas idas e vindas. Já tem uma certa apreensão dos vocábulos, mas não é possível assumí-los. Quando vê sobre o corpete de Melanie Klein, pedacinhos de lápis que são o resultado de um despedaçamento, diz "Poor Melanie Klein".

sábado, 24 de setembro de 2011

Para quem ouve Nirvana assim como eu


"Beat me outta me, beat it, beat it
Beat the outta me..." (Aneurysm)

Ontem fui assistir ao filme Melancolia, de Lars Von Trier, e antes do filme parei num bar pra comer alguma coisa. No telão do bar estava passando algo sobre o Nirvana, vi algumas cenas sem identificar de qual programa seria, até porque não estava interessado muito naquilo. Hoje passeando pela TV acabei parando na MTV, pois está passando o Unplugged do Nirvana. Ironia do caralho, porque hoje é dia de Rock in Rio!

Agora, "a viagem"... Na época do lançamento do álbum Unplugged eu contava com meus 15 anos, tinha um poster no quarto do Kurt Cobain, cara de chapado, segurando uma guitarra, modelo Stratocaster, preta e branca. Acredito que a "cara de chapado" era algo mais de minha percepção do que da foto em si, mas isso é um caso à parte. Um dia me dei conta de que minha guitarra era igual a guitarra do poster. A guitarra veio antes do poster, mas o Nirvana veio antes da guitarra. Assistindo o acústico agora na TV percebo que o Nirvana ainda me afeta! Fato que, pude constatar, dias atrás, ao ir no Morrison Rock Bar e ao ouvir Smells like teen spirit me peguei pulando, pulando e pulando. Na  época do Unplugged, nossa bebida favorita era Fanta com pinga, quando a vaquinha era magra, ou Fanta e vodka, quando a vaquinha rendia, fato que me levou ao mercado comprar Fanta e vodka (a vaquinha foi gorda...). Não havia para nós um ideal muito claro, queríamos curtir, ouvir rock, mas sobretudo distoar do algo que estivesse estabelecido. Minhas noites de insônia aos 15 anos era completada com o vídeo Live! Tonight! Sold out!, nesse vídeo havia um momento em que Kurt tocava Come as you are, e ao começar a cantar, gritava a letra. Essa é a lembrança da minha juventude... Talvez esse fosse o ideal... Talvez o fato de que assim como Kurt gritava, algo em nós gritava também. Parece que, infelizmente, esse grito acalmou com o passar dos anos. Ou então tomou outras formas de se expressar. Não à toa, chamei este lugar de formas de expressão.

Ao trabalhar com jovens, vejo que poucas coisas os afetam assim como o Nirvana tocava para uma juventude. Hoje temos funk, mr catra, nx zero, rihanna... Vai ver, daqui a 15 anos, alguém escreva no que será um blog futurista, sobre como a música Casa das primas do Mc Luan significou sua juventude meio sem sentido, com ideais um tanto quanto confusos...

Sem entrar em nostalgias, ou sentimenalismos. Prefiro pensar (ou melhor, parar de pensar) em como as músicas do Nirvana afetam em mim. Prefiro que elas toquem em algo que não sei dar nome, e que fique assim! Que faça sentido sem ter um sentido! Que seja visceral! Se me dão licença, tenho uma garrafa de vodka pra terminar...

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Em cima de muros


Li um comentário sobre a homossexualidade dizendo que a depressão entre os adolescentes gays é um reflexo da opinião dos defensores dos direitos homossexuais, que por sua vez gera uma certa falta de esperança.

"Quando uma criança foi deliberadamente mal informada sobre as causas da homossexualidade e dizem a ela que os atos homossexuais são normais e naturais, toda esperança de recuperação é retirada dela.”

Ok. Vamos supor que isto realmente seja assim. Quantos casos já se ouviu falar de que um sujeito que se dizia homossexual foi "recuperado"? E de que forma se daria esta prática? Via medicamento? Quando trabalhava em uma farmácia no interior de São Paulo, tinha uma caixa de remédio que me chamava a atenção, pois era a mais colorida, tinha uma espécie de arco-íris, quando vi o anúncio achei fantástico: "Se falta, Centrum completa". Que seja então recuperado. Bom, quem foi que disse que uma vida heterossexual é mais saudável e natural? Ou que uma vida "hetero" não acabe aos prantos num consultório...

Por mais que se tente tirar a homossexualidade de um conceito amargo como o homossexualismo (ninguém sai dizendo por aí que sofre de heterossexualismo), de um desvio de personalidade, anomalia cromossômica (só um pequeno parênteses, Freud mencionava a homossexualidade em seu texto de 1905, Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, como algo comum a todos na vida neurótica - ver meu texto chamado Sexualidades), e etc, o que vemos é que esse esforço tropeça no conservadorismo, aqui definido como politicamente correto, família, religiosidade e outras tantas definições. Não tenho algo contra os conservadores. Só acho que esta tentativa de exaltar valores, esbarre justamente no que estes valores deveriam valorizar, ou seja, a vida.

Estava pensando sobre os recentes kits anti-homofobia (material pedagógico composto por cartilhas e vídeos produzidos pelo MEC) que deveriam ser distribuídos nas escolas numa tentativa de diminuir os casos de homofobia no ambiente escolar. Estes nunca chegaram a tocar numa escola sequer. Vou disponibilizar o pronunciamento de nossa presidenta que, diante da pergunta sobre o que achou dos vídeos (0:50) disse não concordar, uma outra pergunta foi "a senhora assistiu aos vídeos?", "Eu não assisti aos vídeos, todos. A um pedaço que vi na televisão passado por vocês (imprensa), eu não concordo com ele." (1:00)...





As falas das pessoas que acompanhavam esta restrição caminhavam no sentido de que os vídeos incentivariam as crianças à homossexualidade, sendo este um ato vergonhoso, e por aí vai. Bom, não precisamos ir longe, basta acessar algum vídeo anti-homofobia no canal YouTube e acompanhar os comentários.

Quando este assunto chega na escola e, mais especificamente, aos educadores, estes procuram assumir uma certa neutralidade no assunto. Nem contra, nem a favor. Isto seria ótimo se não fosse o fato de que neste silêncio, muitas vezes se esconde a impunidade. Ao ser neutro, muitos educadores ficam de mãos atadas e, portanto, incapazes de assumir uma posição mais efetiva frente ao bullying ou contra alguns estereótipos destrutivos, digamos assim. Nem contra, nem a favor da opção sexual, tudo bem. Mas se tivermos que levantar uma bandeira neste campo que seja CONTRA A INTOLERÂNCIA!!!

Só por medida de provocação vou compartilhar um vídeo, intitulado como #EuSouGay, que faz parte de uma iniciativa a favor da compaixão e respeito ao próximo. Sendo assim, você é gay?!

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O ponto fraco da escola forte







OPOSTOS
Os irmãos Gustavo e Leonardo, de 15 e 12 anos, no bairro onde moram, em São Paulo. Gustavo pediu um colégio mais rigoroso. Leonardo se deu bem em uma escola com menos cobrança




 Foram os piores anos da minha vida.” A frase ainda é dita com sofrimento pela estudante carioca Chanel de Andrade Rodrigues, de 18 anos. Ela está no 1o ano da faculdade de artes, mas não esquece o período em que estudou no Santo Agostinho, do Rio de Janeiro, um dos colégios mais tradicionais e bem-conceituados do país. Do 7o ano do ensino fundamental ao 1o ano do ensino médio, passou seus dias perdida entre aulas que não acompanhava, um enorme volume de conteúdos para memorizar, provas difíceis, notas baixas e um séquito de professores particulares a cada final de ano letivo. Na escola, não gostava de sair para o recreio e não comia nada. Em casa, compensava a ansiedade comendo demais. Na escola anterior, menos rígida, onde tirava boas notas, costumava nadar e fazer aulas de dança. No Santo Agostinho, evitava as aulas de educação física. Chanel entrou em depressão e engordou 20 quilos.
A mãe tentou convencê-la a fazer terapia, mas ela se recusava. “Eu só queria ser invisível”, afirma. “Odiava a competitividade que estava sempre no ar.” Só depois que Chanel foi reprovada, no 1o ano, sua mãe decidiu trocá-la de escola. (Procurado por ÉPOCA, o Santo Agostinho não respondeu aos pedidos de entrevista.) O caso de Chanel é apenas um entre centenas que revelam uma realidade incômoda: o custo emocional alto – muitas vezes altíssimo – do modelo de eficiência adotado naquelas escolas que exigem alto desempenho dos alunos e garantem todo ano boas colocações nos melhores vestibulares.
Consideradas as melhores do país, quase sempre campeãs nas provas nacionais de avaliação, as escolas de ensino tradicional representam, na mente de muitos pais, uma esperança de sucesso para a vida dos filhos num mercado de trabalho competitivo. Apesar de seus resultados inquestionáveis e da procura crescente por escolas desse tipo, esse modelo agora começa a ser mais e mais questionado por seus efeitos colaterais.
O ensino tradicional surgiu na Europa do século XVIII como um modelo em que os alunos são ensinados e avaliados de forma padronizada. Ele se inspira na ideia de que a mente das crianças é uma tabula rasa, um espaço em branco sobre o qual os diversos conteúdos – gramática, matemática, ciências, história etc. – devem ser inscritos seguindo um método rigoroso de exposição e avaliação. Mais do que qualquer outra aptidão, valoriza o acúmulo de conhecimento: quanto mais fatos e fórmulas o aluno aprende, mais bem avaliado ele é.
Há, ainda, uma forte pressão por desempenho nas provas e um grande volume de conteúdo a estudar. As escolas tradicionais também costumam ser mais rígidas em regras de comportamento, como respeito ao horário, frequência às aulas, uso de uniforme e atitude no recreio. Apesar de ter incorporado conceitos pedagógicos mais modernos, a essência do modelo tradicional de ensino permanece a mesma – e a educação tradicional está em alta no mundo, com filas de espera para matrículas e salas abarrotadas de alunos.
A grande procura por uma vaga numa dessas escolas se explica pelo desempenho acima da média de seus alunos. No Brasil, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que classifica as escolas públicas e particulares a partir das notas tiradas numa prova feita pelos alunos, é decisivo para a família na hora de escolher onde matricular seus filhos. Há anos, os colégios mais tradicionais e rígidos ocupam o topo da lista. “É comum hoje em dia pais e mães compararem as posições das instituições em que seus filhos estudam. Se os resultados das escolas não são bons, bate o sentimento de que se está fazendo algo errado”, afirma Quézia Bombonato, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia.




SOB MEDIDA
Giulianna Freitas, de 12 anos, no colégio tradicional em que estuda, em São Paulo. Ela tira de letra regras como uniforme impecável e contato restrito com meninos










 Em Vinhedo, no interior de São Paulo, uma escola aberta em 2001 mostra essa tendência. O Colégio de Vinhedo, que busca alunos de classe média alta, reproduz uma escola tradicional europeia. Os alunos usam uniformes formais, os professores vestem ternos e tailleurs. A própria decoração da escola parece de outro tempo – embora, dentro da sala de aula, haja lousas interativas, câmeras e laptops para cada aluno. Há ênfase no conteúdo e na disciplina. “Nossa ideia é resgatar valores que são esquecidos”, diz o diretor, Eduardo Cumone. “Também temos uma carga horária maior, para que haja melhores resultados.” A proposta da escola encontra eco nos pais. A procura triplicou nos últimos cinco anos. Em 2001, havia uma única turma por série; em 2012, haverá duas ou três.
Os rankings de avaliação também puxam a educação para o lado mais rígido em outros países. “Nos Estados Unidos, está havendo um retorno à tradição, amparado na crença de que pontos na competição internacional são importantes”, diz o psicólogo americano Howard Gardner, criador da Teoria das Inteligências Múltiplas, que propõe vários tipos de inteligência além daquela medida por testes de Q.I. Na Europa, acontece o mesmo. O Reino Unido é um bom exemplo. No fim de 2010, a Secretaria de Educação anunciou uma reforma no ensino que inclui o “retorno aos valores tradicionais”: mais conteúdo, mais disciplina – e até a obrigatoriedade de roupas s mais formais na rede pública, com aventais para as meninas e terno e gravata para os meninos. No anúncio, o secretário Michael Gove mostrou sua preocupação com a queda do país nos rankings mundiais de educação. “Vamos voltar ao topo”, disse.
O ensino tradicional ganhou ainda mais adeptos recentemente com o lançamento do livro Grito de guerra da mãe tigre. Nele, a advogada sino-americana Amy Chua relata sua experiência na criação de duas filhas com rigidez e exigências que beiravam o absurdo. Ambas eram proibidas de ficar abaixo do 1o lugar na classe e tinham de realizar atividades extracurriculares dificílimas escolhidas pela mãe – uma se tornou exímia violinista e a outra pianista. Pela defesa desses padrões quase marciais de ensino, Amy chegou a ser ameaçada de morte na internet. Mas seu livro entrou rapidamente na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos. Isso expõe o medo de toda a nação de se ver rebaixada nas listas internacionais de melhores alunos.
Para quem consegue seguir em frente e encarar tantas exigências, o ensino tradicional pode dar certo. Giulianna Freitas, de 12 anos, cursa o 7o ano do colégio Dante Alighieri, um dos mais antigos e tradicionais de São Paulo. Está lá desde os 3 anos. Ela diz que adora. Afirma tirar de letra as regras rígidas da escola, entre elas uniforme impecável e as restrições ao contato afetivo entre meninas e meninos. “Não me vejo em outro colégio”, diz. Sua mãe, a dentista Ana Claudia Garcia de Freitas, afirma ter escolhido o Dante pelos ótimos laboratórios e pelas bibliotecas. E também por ter sido sua escola – e a de sua mãe. “É uma tradição na família.”
Mas os educadores têm visto com ceticismo cada vez maior o sucesso desse modelo. Eles alertam sobre vários problemas que decorrem da estratégia convencional, baseada na combinação de competitividade e pressão por notas. A primeira limitação é a seleção natural que põe em prática. Esses colégios selecionam os alunos na hora da matrícula – com os famosos “vestibulinhos” – e, depois disso, acabam selecionando, pelo grau de dificuldade em acompanhar o ritmo, aqueles que ficam. “Valorizamos o conteúdo e somos inflexíveis em nossa filosofia de foco no professor, cultura clássica e disciplina”, diz Maria Elisa Penna Forte, supervisora do colégio carioca São Bento, que só aceita meninos e foi quatro vezes campeão nacional do Enem. “Os pais querem que os filhos se saiam bem aqui, mas, em muitos casos, isso não acontece. Aí o melhor é mudar de escola.”
A pressão por boas notas pode causar estresse e doenças emocionais. E não garante sucesso no futuro
São escolas que, naturalmente, funcionam para os melhores. E os melhores, por motivos óbvios, não são todos. Nem sequer são a maioria. “No caso das escolas tradicionais e seus vestibulinhos, não são os pais que escolhem a escola. É a escola que acaba escolhendo os alunos que quer”, diz Victor Paro, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Para ele, essa situação põe em xeque a própria qualidade desse tipo de ensino. Essas instituições têm as melhores médias de desempenho por terem a melhor pedagogia ou porque os alunos que passam pelo funil são os mais inteligentes, portanto serão os melhores, independentemente do método de ensino? “Certamente, elas têm valor. Mas é fato que, para entrar, os alunos já têm de ser bons”, diz Paro.




SENSIBILIDADE
A estudante de artes Chanel Rodrigues, de 18 anos, faz desenhos em casa, no Rio. Ela entrou em depressão nos anos em que estudou em um colégio tradicional



Uma das grandes dificuldades dos pais é aceitar que a maioria dos filhos não se enquadra ou não tem condição de acompanhar o grau de exigência das escolas mais competitivas. Alguns pais acreditam que tirar o filho da escola mais conceituada é sinal de fracasso. Insistem nela – e isso acaba pesando ainda mais sobre os ombros do estudante. “A criança sofre porque não tem o perfil para aquele tipo de colégio”, diz Fábio Barbirato, chefe do setor de Neuropsiquiatria da Infância e da Adolescência da Santa Casa, no Rio de Janeiro. “Os pais precisam conhecer o perfil de seus filhos.”
A política de seleção dos melhores não pode servir para educar a média das crianças, uma exigência social. Não há nada a opor a uma política de seleção rigorosa. Mas um país que precisa oferecer educação de qualidade para todos precisa se preocupar com aqueles que não passam por esse funil – a ampla maioria.
O ambiente de alta pressão tem ainda um custo emocional para aqueles que não se adaptam. Em geral, aumenta o nervosismo da criança, que fica exposta a um grau elevado de exigência antes de ter amadurecido. Os sintomas são noites maldormidas ou mesmo crises nervosas antes de algumas provas. Em alguns casos, o peso da cobrança pode gerar traumas. O médico Barbirato tem promovido uma cruzada contra os transtornos de ansiedade causados pela vida escolar. Diz que, diariamente, na clínica e em seu consultório particular, atende crianças em sofrimento decorrente da pressão dos estudos. Para Jorge Harada, chefe da área de Saúde Escolar da Sociedade Brasileira de Pediatria, o estresse dessas escolas desencadeia um processo orgânico que pode levar à perda da imunidade e causar até anemia. “Vivemos numa sociedade competitiva, mas a escola não pode ser uma fábrica de pessoas em série. É preciso respeitar as singularidades de cada um”, diz.





MOTIVAÇÃO
Artur e Olívia na Escola Parque, de linha construtivista, no Rio de Janeiro. A mãe deles os tirou de uma escola tradicional, embora tivessem boas notas.
Ela diz que eles estavam “no automático”








Nos Estados Unidos, a mãe de uma adolescente que recebeu diagnóstico de estresse agudo não se conformou em reclamar com a escola sobre o ritmo puxado das aulas e lições de casa. A advogada Vicki Abeles, depois de perceber que o drama de sua filha era vivido também em outras famílias, fez um documentário sobre o que chamou de massacre do ensino competitivo, imposto em quase todas as redes de escolas públicas americanas graças a incentivos do governo. O documentário, que ouviu dezenas de alunos e famílias que desenvolveram doenças emocionais por causa da alta pressão, virou sensação. Já arrecadou mais de R$ 10 milhões (custou R$ 800 mil), sem exibições em cinemas, apenas em escolas ou auditórios. “Quero que minhas filhas cresçam saudáveis e criativas. Não acredito no ensino que educa para tirar boas notas em rankings”, afirma Vicki (leia a entrevista na página 95).
Apesar da expectativa dos pais, o ensino tradicional, também não garante sucesso na carreira. “Mesmo no caso de crianças que suportam a pressão das escolas tradicionais, não existe certeza de que serão adultos bem-sucedidos”, diz Quezia Bombonato. “Muitas vezes são alunos com capacidade de absorção de conteúdos e boa memória, mas cujos dons específicos não são devidamente explorados.” Segundo Quezia, o processo completo de aprendizado de um jovem é formado de muitas variáveis. Se o que ele aprende não faz sentido para a vida, isso poderá ser percebido num futuro mais distante, quando ele estiver frente a frente com suas decisões profissionais. “As pressões que ele sofreu nos bancos escolares podem se transformar em problemas de percepção ou relacionamento na vida adulta, comprometendo o sucesso de suas realizações”, diz ela.
Diante dos efeitos colaterais da pressão educacional, muitos pais se voltam para as escolas com propostas alternativas. Elas não têm uma fórmula única e vêm se desenvolvendo desde os anos 1960, com propostas pedagógicas modernas. Esses métodos de ensino começaram a ganhar relevância nos anos 1970, quando novas teorias sobre como as crianças aprendem começaram a ser usadas pelas escolas. No geral, elas priorizam o estímulo aos talentos pessoais, as artes, o contato com a natureza e o lado emocional dos alunos. O método mais difundido no Brasil é o construtivista, inspirado nas ideias do psicólogo suíço Jean Piaget, segundo o qual as crianças aprendem em conjunto e sempre usando a realidade de cada um como referência. A linha montessoriana, proposta pela pedagoga italiana Maria Montessori, foi uma das primeiras a inserir questões afetivas na educação. Na pedagogia Waldorf, do filósofo alemão Rudolf Steiner, o aprendizado anda de mãos dadas com atividades corporais e artesanais. Com resultados não tão satisfat ios em avaliações nacionais, muitas dessas escolas se reorganizaram para melhorar sua competitividade. Hoje, tentam combinar o melhor dos dois mundos, incorporando parte da disciplina e da exigência de bom desempenho das escolas tradicionais.
Para alguns pais, só o ensino de alto desempenho garante um futuro de sucesso para os filhos
Essas alternativas também podem ser um caminho para o sucesso na vida real. Os americanos Larry Page e Sergei Brin, fundadores do Google, estudaram em escola montessoriana. Eles afirmam que a escola é um dos principais fatores de seu êxito empreendedor. Lá, segundo eles, aprenderam a trabalhar sozinhos, com ideias próprias. Dizem que a educação montessoriana lhes deu liberdade para perseguir seus sonhos e paixões. Outros inovadores da era digital, como Jeff Bezos, fundador da loja virtual Amazon, e Jimmy Wales, criador da Wikipédia, também vieram de escolas montessorianas. s
Um dos apelos dessas linhas alternativas é oferecer um ensino que pretende despertar mais iniciativa e a criatividade das crianças. Isso pode ser salutar mesmo para os alunos que, aparentemente, se dão bem no esquema das escolas competitivas. Foi o que percebeu a empresária carioca Tatiana Queiroz, mãe de Artur, de 15 anos, e Olívia, de 12. “Eles tiravam boas notas, mas faziam tudo no automático. Sentia que não estavam motivados. O conteúdo era muita memorização e pouca análise”, diz. Quando os filhos entraram no ensino fundamental, Tatiana optou pelo tradicional Colégio Santo Inácio, pelos bons resultados nos rankings e pela disciplina que complementava os limites que ela estabelecia em casa. Com o tempo, sentiu falta de mais estímulo criativo para os filhos.
A maioria dos colégios tradicionais tem classes numerosas, e, por isso, o diálogo casa-escola fica difícil. Há dois anos, ela transferiu os dois filhos para um colégio alternativo. A coordenadora pedagógica do Santo Inácio, Ana Maria Loureiro, diz que a tradição dá segurança a quem procura a escola. Segundo ela, 70% dos alunos são filhos de ex-alunos. Um sinal de sucesso da instituição. “Mas estamos buscando a modernidade, especialmente no que diz respeito às novas tecnologias e à necessidade de formar professores antenados com a realidade”, afirma.
Diante das críticas, as escolas tradicionais tentam se renovar. Para conciliar educação de qualidade sem sofrer as consequências indesejadas, começam a buscar o caminho do meio. O colégio marista São José, no Rio, mantém suas aulas de religião, mas introduziu aulas especiais para ensinar os alunos a associar o mundo atual ao que é estudado. A ideia reforça a tendência de que mais importante do que decorar informação é saber analisá-la. No Dante, segundo seu diretor, Lauro Spaggiari, há a filosofia de que é preciso trabalhar apenas com o essencial do conteúdo e muita discussão, mas sem abrir mão do rigor na disciplina. “Não vivemos mais no tempo em que o professor era o único provedor da informação”, diz Spaggiari. “Sabemos que, em tempos de internet, a informação está ao alcance de todos. Nosso papel principal é ensinar ao aluno o que fazer com ela.”
Mesmo que essas escolas consigam se atualizar, ainda assim não serão o modelo ideal para todas as crianças. A família da auxiliar administrativa Fernanda Sato descobriu de forma inusitada que não há um único caminho para a educação dos filhos. Há cinco anos, mudou-se para um bairro em São Paulo onde os filhos, Gustavo e Leonardo, na época com 10 e 7 anos, iriam a pé para o novo colégio, de estilo tradicional e dirigido por freiras. Por quatro anos, o plano funcionou. No fim de 2010, os meninos procuraram os pais com um pedido: queriam mudar de escola. Para complicar, cada um pediu um colégio. Leonardo, o mais novo, não gostava do método tradicional. “Ele não reagia bem às cobranças dos professores e começou a perder o interesse pelos estudos”, diz Fernanda. Gustavo, fã da área de exatas, pediu para estudar num colégio ainda mais rigoroso, com carga horária pesada, muita competição e voltado para o vestibular. “Penso em ser engenheiro e queria uma escola que me preparasse melhor”, afirma. Hoje, a logística da família ficou mais complicada, mas Fernanda não se arrepende. “Descobri que cada filho é de um jeito.”