quinta-feira, 29 de setembro de 2011

É um chapéu!

Certa vez, me perguntaram sobre alguma sugestão para se avaliar pessoas que vão trabalhar com crianças. Não lembro o que respondi na época, talvez algo sobre o que fazer com o choro das crianças, ou alguma coisa teórica... Se eu tivesse que responder a essa pergunta hoje minha sugestão seria esta:

Descreva o que você vê na figura a seguir:


Para quem entendeu a questão ou respondeu corretamente pode parar a leitura aqui, caso não, ofereço um pouco de contexto:



"Certa vez, quando tinha seis anos, vi num livro sobre a Floresta Virgem, 'Histórias Vividas', uma imponente gravura. Representava ela uma jibóia que engolia uma fera. Eis a cópia do desenho.
Dizia o livro: 'As jibóias engolem, sem mastigar, a presa inteira. Em seguida, não podem mover-se e dormem os seis meses da digestão.'
Refleti muito então sobre as aventuras da selva, e fiz, com lápis de cor, o meu primeiro desenho. Meu desenho número 1 era assim:


Mostrei minha obra-prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes fazia medo.
Responderam-me: 'Por que é que um chapéu faria medo?'
Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jibóia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jibóia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações. Meu desenho número 2 era assim:



As pessoas grandes aconselharam-me deixar de lado os desenhos de jibóias abertas ou fechadas, e dedicar-me de preferência à geografia, à história, ao cálculo, à gramática. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma esplêndida carreira de pintor. Eu fora desencorajado pelo insucesso do meu desenho número 1 e do meu desenho número 2. As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando.
Tive pois de escolher uma outra profissão e aprendi a pilotar aviões. Voei, por assim dizer, por todo o mundo. E a geografia, é claro, me serviu muito. Sabia distinguir, num relance, a China e o Arizona. É muito útil, quando se está perdido na noite.
Tive assim, no correr da vida, muitos contatos com muita gente séria. Vivi muito no meio das pessoas grandes. Vi-as muito de perto. Isso não melhorou, de modo algum, a minha antiga opinião. 
Quando encontrava uma que me parecia um pouco lúcida, fazia com ela a experiência do meu desenho número 1, que sempre conservei comigo. Eu queria saber se ela era verdadeiramente compreensiva. Mas respondia sempre: 'É um chapéu'. Então eu não lhe falava nem de jibóias, nem de florestas virgens, nem de estrelas. Punha-me ao seu alcance. Falava-lhe de bridge, de golfe, de política, de gravatas. E a pessoa grande ficava encantada de conhecer um homem tão razoável."
(Antoine de Saint-Exupéry)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Análise do discurso e Análise do eu

Quando se pensa em analisar algo, acaba-se caindo no seguinte problema, deve-se analisar o discurso sem levar em conta aquele que diz, ou então é necessário analisar somente o eu. Num texto do Lacan (1986) chamado Análise do discurso e Análise do eu (O Seminário, Livro 1 - Os escritos técnicos de Freud), podemos perceber quais podem ser os enganos cometidos nestas análises. Lacan vai discursar sobre dois casos analisados por Anna Freud e outro por Melanie Klein.

É muito difícil definir o eu como uma função autônoma, sabendo que esta metodologia segue o eu caracterizando-o por um bifuncionamento, por uma splitting (divisão), ao mesmo tempo em que se toma o eu como um mestre de erros, sede das ilusões. Anna Freud em seu livro O Eu e os Mecanismos de Defesa (1946), trata o eu como se este fosse um homenzinho que está dentro do homem, tendo uma vida autônoma dentro do sujeito estando ali para defendê-lo, na análise, sustenta a autora, o eu só se manifesta pelas suas defesas, ou seja, na medida em que se opõe ao trabalho analítico. Lacan vai dizer que a função dinâmica do eu no contexto analítico permanece contraditória, justamente por não ter sido rigorosamente situada.

Num estudo de caso que trata das resistências do eu, Anna Freud conta que o comportamento de sua paciente no início da análise é amigável e franco, mas que esta evita cuidadosamente nos relatos aludir ao seu sintoma, deixando passar em silêncio as crises de ansiedade que tem no intervalo das sessões. Quando a analista tenta fazer o sintoma entrar na análise ou interpretar a ansiedade, o comportamento amigável da paciente se modifica. Nesses momentos a paciente descarrega na analista discursos irônicos e de sarcasmos que a desconcertam. "Entretanto, uma análise mais aprofundada mostra, em seguida, que zombaria e caçoada não constituem, para falar propriamente, uma reação de transferência e não estão de modo algum ligados à situação analítica. A paciente recorre a essa manobra, dirigida contra si mesma, cada vez que sentimentos de ternura, de desejo, ou de ansiedade estão para surgir no consciente.", relata Anna Freud. Para a autora, a técnica que se impõe neste caso é a de analisar a defesa da paciente contra seus afetos e em seguida estudar a sua resistência na transferência.

Lacan vai dizer que neste caso a necessidade de analisar a defesa do eu, trata-se de um erro. Anna Freud tomou as coisas pela relação dual entre ela e a doente. Tomou a defesa da paciente por aquilo através do qual se manifestava, uma agressão contra ela (Anna Freud). É no plano do eu dela (Anna Freud), é no âmbito da relação dual com ela (Anna Freud), que percebeu as manifestações da defesa do eu. A manifestação da transferência segue a fórmula que faz da transferência a reprodução de uma situação. Justamente, por não oferecer como esta situação é estruturada é que esta fórmula torna-se incompleta. Assim, a análise não pode progredir, pois não deveria ter distinguido a interpretação dual, onde entra a rivalidade de eu a eu (analista e analisando). Freud nos diz que é a conclusão de um pacto que define a entrada na situação analítica, o eu do paciente promete a livre disposição de tudo que a sua autopercepção lhe entrega. Do outro lado, é assegurado a maior discrição e colocado ao seu serviço a experiência do analista na interpretação do material submetido ao inconsciente. Quando se caminha rumo à descoberta do inconsciente, o que se encontra são situações estruturadas, organizadas, complexas. Freud deu o primeiro modelo através do Complexo de Édipo. Todo o desenvolvimento da análise é feito pela valorização sucessiva de cada uma das tensões implicadas nesse sistema triangular. Nisto reside um caráter profundamente dissimétrico em cada uma das relações duais que compreende a estrutura edipiana, a relação que liga o sujeito à mãe é diferente da que liga ao pai, assim como a relação narcísica ou imaginária com o pai é diferente da relação simbólica, e também da relação que Lacan chama de real. Este esquema deve ser mantido como essencial, pois ele é fundamental, não somente para toda compreensão do sujeito, mas também para toda realização simbólica, pelo sujeito, do inconsciente.

"É a reconstrução analítica que o sujeito deve autenticar", afirma Lacan. E esta reconstrução não é baseada na integridade da memória, mas é com o auxílio de vazios que a lembrança deve ser revivida. O real, ou o que é percebido como tal, é o que resiste absolutamente à simbolização. Certas interpretações (do conteúdo) não são simbolizadas pelo sujeito. Manifestam-se numa etapa em que não podem lhes dar a revelação de qual é a sua situação nesse domínio interditado que é o inconsciente, estando ainda no plano da negação da negação. Algo dessa ordem está para além do discurso e necessita de um salto no discurso, o recalque não pode desaparecer simplesmente, só pode ser ultrapassado. Àquilo que Anna Freud chama de análise das defesas contra o afeto é uma etapa da sua própria compreensão e não da compreensão do sujeito. Ao acreditar que a defesa do sujeito é uma defesa contra ela isso permite com que possa analisar a resistência da transferência. Isto leva a alguém que não está lá. O ponto de vista de Anna Freud é intelectualista, e a leva a formular que a análise deve ser conduzida a partir de uma posição mediana, moderada, que é a posição do eu. Para Lacan, o contexto da análise é reconhecer que função assume o sujeito na ordem das relações simbólicas que cobre todo o campo das relações humanas.

Uma outro estudo sobre um caso analisado por Melanie Klein (The Importance of Symbol-Formation in the Development of the Ego - 1930), Lacan vai apontar que Klein "enfia o simbolismo, com a maior brutalidade no pequeno Dick!". Ela o joga numa verbalização, um tanto quanto, brutal do mito edípico - Você é o trenzinho, você quer foder a sua mãe. A falta de contato do pequeno Dick se dá pelo simples motivo de que seu ego ainda não está formado. Para Melanie Klein, Dick se distingue dos neuróticos, na sua indiferença, na sua apatia, na sua ausência. Com efeito, o que nele não é simbolizado é a realidade. O mundo humano é um mundo infinito com relação aos objetos, a esse respeito, Dick vive num mundo não-humano. No consultório de Klein, não existe para ele nem outro nem eu, há uma realidade pura e simples. Os trens e tudo que se segue é, sem dúvida, alguma coisa, entretanto é algo que não é nem nomeável, nem nomeada, pois não pode nem mesmo chegar à primeira espécie de identificação, que já seria um esboço de simbolismo. Dick não apenas está na realidade, mas vive na realidade. De acordo com Lacan a relação entre Klein e Dick se manifesta da seguinte forma, "ele está lá como se ela não existisse, como se fosse um móvel. E, entretanto, ela lhe fala." Normalmente, o sujeito atribui aos objetos de sua identificação primitiva uma série de equivalências imaginárias que multiplicam seu mundo, ou seja, traça identificações com certos objetos, retira-os, refaz com outros. Cada vez, a ansiedade interrompe a identificação definitiva, a fixação da realidade. Estas voltas vão emoldurar a esse real infinitamente mais complexo que é o real humano. Para Dick a realidade está bem fixada, vinda ao longo do qual as fantasias são simbolizadas, mas porque ele não pode fazer essas idas e vindas. Já tem uma certa apreensão dos vocábulos, mas não é possível assumí-los. Quando vê sobre o corpete de Melanie Klein, pedacinhos de lápis que são o resultado de um despedaçamento, diz "Poor Melanie Klein".

sábado, 24 de setembro de 2011

Para quem ouve Nirvana assim como eu


"Beat me outta me, beat it, beat it
Beat the outta me..." (Aneurysm)

Ontem fui assistir ao filme Melancolia, de Lars Von Trier, e antes do filme parei num bar pra comer alguma coisa. No telão do bar estava passando algo sobre o Nirvana, vi algumas cenas sem identificar de qual programa seria, até porque não estava interessado muito naquilo. Hoje passeando pela TV acabei parando na MTV, pois está passando o Unplugged do Nirvana. Ironia do caralho, porque hoje é dia de Rock in Rio!

Agora, "a viagem"... Na época do lançamento do álbum Unplugged eu contava com meus 15 anos, tinha um poster no quarto do Kurt Cobain, cara de chapado, segurando uma guitarra, modelo Stratocaster, preta e branca. Acredito que a "cara de chapado" era algo mais de minha percepção do que da foto em si, mas isso é um caso à parte. Um dia me dei conta de que minha guitarra era igual a guitarra do poster. A guitarra veio antes do poster, mas o Nirvana veio antes da guitarra. Assistindo o acústico agora na TV percebo que o Nirvana ainda me afeta! Fato que, pude constatar, dias atrás, ao ir no Morrison Rock Bar e ao ouvir Smells like teen spirit me peguei pulando, pulando e pulando. Na  época do Unplugged, nossa bebida favorita era Fanta com pinga, quando a vaquinha era magra, ou Fanta e vodka, quando a vaquinha rendia, fato que me levou ao mercado comprar Fanta e vodka (a vaquinha foi gorda...). Não havia para nós um ideal muito claro, queríamos curtir, ouvir rock, mas sobretudo distoar do algo que estivesse estabelecido. Minhas noites de insônia aos 15 anos era completada com o vídeo Live! Tonight! Sold out!, nesse vídeo havia um momento em que Kurt tocava Come as you are, e ao começar a cantar, gritava a letra. Essa é a lembrança da minha juventude... Talvez esse fosse o ideal... Talvez o fato de que assim como Kurt gritava, algo em nós gritava também. Parece que, infelizmente, esse grito acalmou com o passar dos anos. Ou então tomou outras formas de se expressar. Não à toa, chamei este lugar de formas de expressão.

Ao trabalhar com jovens, vejo que poucas coisas os afetam assim como o Nirvana tocava para uma juventude. Hoje temos funk, mr catra, nx zero, rihanna... Vai ver, daqui a 15 anos, alguém escreva no que será um blog futurista, sobre como a música Casa das primas do Mc Luan significou sua juventude meio sem sentido, com ideais um tanto quanto confusos...

Sem entrar em nostalgias, ou sentimenalismos. Prefiro pensar (ou melhor, parar de pensar) em como as músicas do Nirvana afetam em mim. Prefiro que elas toquem em algo que não sei dar nome, e que fique assim! Que faça sentido sem ter um sentido! Que seja visceral! Se me dão licença, tenho uma garrafa de vodka pra terminar...

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Em cima de muros


Li um comentário sobre a homossexualidade dizendo que a depressão entre os adolescentes gays é um reflexo da opinião dos defensores dos direitos homossexuais, que por sua vez gera uma certa falta de esperança.

"Quando uma criança foi deliberadamente mal informada sobre as causas da homossexualidade e dizem a ela que os atos homossexuais são normais e naturais, toda esperança de recuperação é retirada dela.”

Ok. Vamos supor que isto realmente seja assim. Quantos casos já se ouviu falar de que um sujeito que se dizia homossexual foi "recuperado"? E de que forma se daria esta prática? Via medicamento? Quando trabalhava em uma farmácia no interior de São Paulo, tinha uma caixa de remédio que me chamava a atenção, pois era a mais colorida, tinha uma espécie de arco-íris, quando vi o anúncio achei fantástico: "Se falta, Centrum completa". Que seja então recuperado. Bom, quem foi que disse que uma vida heterossexual é mais saudável e natural? Ou que uma vida "hetero" não acabe aos prantos num consultório...

Por mais que se tente tirar a homossexualidade de um conceito amargo como o homossexualismo (ninguém sai dizendo por aí que sofre de heterossexualismo), de um desvio de personalidade, anomalia cromossômica (só um pequeno parênteses, Freud mencionava a homossexualidade em seu texto de 1905, Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, como algo comum a todos na vida neurótica - ver meu texto chamado Sexualidades), e etc, o que vemos é que esse esforço tropeça no conservadorismo, aqui definido como politicamente correto, família, religiosidade e outras tantas definições. Não tenho algo contra os conservadores. Só acho que esta tentativa de exaltar valores, esbarre justamente no que estes valores deveriam valorizar, ou seja, a vida.

Estava pensando sobre os recentes kits anti-homofobia (material pedagógico composto por cartilhas e vídeos produzidos pelo MEC) que deveriam ser distribuídos nas escolas numa tentativa de diminuir os casos de homofobia no ambiente escolar. Estes nunca chegaram a tocar numa escola sequer. Vou disponibilizar o pronunciamento de nossa presidenta que, diante da pergunta sobre o que achou dos vídeos (0:50) disse não concordar, uma outra pergunta foi "a senhora assistiu aos vídeos?", "Eu não assisti aos vídeos, todos. A um pedaço que vi na televisão passado por vocês (imprensa), eu não concordo com ele." (1:00)...





As falas das pessoas que acompanhavam esta restrição caminhavam no sentido de que os vídeos incentivariam as crianças à homossexualidade, sendo este um ato vergonhoso, e por aí vai. Bom, não precisamos ir longe, basta acessar algum vídeo anti-homofobia no canal YouTube e acompanhar os comentários.

Quando este assunto chega na escola e, mais especificamente, aos educadores, estes procuram assumir uma certa neutralidade no assunto. Nem contra, nem a favor. Isto seria ótimo se não fosse o fato de que neste silêncio, muitas vezes se esconde a impunidade. Ao ser neutro, muitos educadores ficam de mãos atadas e, portanto, incapazes de assumir uma posição mais efetiva frente ao bullying ou contra alguns estereótipos destrutivos, digamos assim. Nem contra, nem a favor da opção sexual, tudo bem. Mas se tivermos que levantar uma bandeira neste campo que seja CONTRA A INTOLERÂNCIA!!!

Só por medida de provocação vou compartilhar um vídeo, intitulado como #EuSouGay, que faz parte de uma iniciativa a favor da compaixão e respeito ao próximo. Sendo assim, você é gay?!

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O ponto fraco da escola forte







OPOSTOS
Os irmãos Gustavo e Leonardo, de 15 e 12 anos, no bairro onde moram, em São Paulo. Gustavo pediu um colégio mais rigoroso. Leonardo se deu bem em uma escola com menos cobrança




 Foram os piores anos da minha vida.” A frase ainda é dita com sofrimento pela estudante carioca Chanel de Andrade Rodrigues, de 18 anos. Ela está no 1o ano da faculdade de artes, mas não esquece o período em que estudou no Santo Agostinho, do Rio de Janeiro, um dos colégios mais tradicionais e bem-conceituados do país. Do 7o ano do ensino fundamental ao 1o ano do ensino médio, passou seus dias perdida entre aulas que não acompanhava, um enorme volume de conteúdos para memorizar, provas difíceis, notas baixas e um séquito de professores particulares a cada final de ano letivo. Na escola, não gostava de sair para o recreio e não comia nada. Em casa, compensava a ansiedade comendo demais. Na escola anterior, menos rígida, onde tirava boas notas, costumava nadar e fazer aulas de dança. No Santo Agostinho, evitava as aulas de educação física. Chanel entrou em depressão e engordou 20 quilos.
A mãe tentou convencê-la a fazer terapia, mas ela se recusava. “Eu só queria ser invisível”, afirma. “Odiava a competitividade que estava sempre no ar.” Só depois que Chanel foi reprovada, no 1o ano, sua mãe decidiu trocá-la de escola. (Procurado por ÉPOCA, o Santo Agostinho não respondeu aos pedidos de entrevista.) O caso de Chanel é apenas um entre centenas que revelam uma realidade incômoda: o custo emocional alto – muitas vezes altíssimo – do modelo de eficiência adotado naquelas escolas que exigem alto desempenho dos alunos e garantem todo ano boas colocações nos melhores vestibulares.
Consideradas as melhores do país, quase sempre campeãs nas provas nacionais de avaliação, as escolas de ensino tradicional representam, na mente de muitos pais, uma esperança de sucesso para a vida dos filhos num mercado de trabalho competitivo. Apesar de seus resultados inquestionáveis e da procura crescente por escolas desse tipo, esse modelo agora começa a ser mais e mais questionado por seus efeitos colaterais.
O ensino tradicional surgiu na Europa do século XVIII como um modelo em que os alunos são ensinados e avaliados de forma padronizada. Ele se inspira na ideia de que a mente das crianças é uma tabula rasa, um espaço em branco sobre o qual os diversos conteúdos – gramática, matemática, ciências, história etc. – devem ser inscritos seguindo um método rigoroso de exposição e avaliação. Mais do que qualquer outra aptidão, valoriza o acúmulo de conhecimento: quanto mais fatos e fórmulas o aluno aprende, mais bem avaliado ele é.
Há, ainda, uma forte pressão por desempenho nas provas e um grande volume de conteúdo a estudar. As escolas tradicionais também costumam ser mais rígidas em regras de comportamento, como respeito ao horário, frequência às aulas, uso de uniforme e atitude no recreio. Apesar de ter incorporado conceitos pedagógicos mais modernos, a essência do modelo tradicional de ensino permanece a mesma – e a educação tradicional está em alta no mundo, com filas de espera para matrículas e salas abarrotadas de alunos.
A grande procura por uma vaga numa dessas escolas se explica pelo desempenho acima da média de seus alunos. No Brasil, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que classifica as escolas públicas e particulares a partir das notas tiradas numa prova feita pelos alunos, é decisivo para a família na hora de escolher onde matricular seus filhos. Há anos, os colégios mais tradicionais e rígidos ocupam o topo da lista. “É comum hoje em dia pais e mães compararem as posições das instituições em que seus filhos estudam. Se os resultados das escolas não são bons, bate o sentimento de que se está fazendo algo errado”, afirma Quézia Bombonato, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia.




SOB MEDIDA
Giulianna Freitas, de 12 anos, no colégio tradicional em que estuda, em São Paulo. Ela tira de letra regras como uniforme impecável e contato restrito com meninos










 Em Vinhedo, no interior de São Paulo, uma escola aberta em 2001 mostra essa tendência. O Colégio de Vinhedo, que busca alunos de classe média alta, reproduz uma escola tradicional europeia. Os alunos usam uniformes formais, os professores vestem ternos e tailleurs. A própria decoração da escola parece de outro tempo – embora, dentro da sala de aula, haja lousas interativas, câmeras e laptops para cada aluno. Há ênfase no conteúdo e na disciplina. “Nossa ideia é resgatar valores que são esquecidos”, diz o diretor, Eduardo Cumone. “Também temos uma carga horária maior, para que haja melhores resultados.” A proposta da escola encontra eco nos pais. A procura triplicou nos últimos cinco anos. Em 2001, havia uma única turma por série; em 2012, haverá duas ou três.
Os rankings de avaliação também puxam a educação para o lado mais rígido em outros países. “Nos Estados Unidos, está havendo um retorno à tradição, amparado na crença de que pontos na competição internacional são importantes”, diz o psicólogo americano Howard Gardner, criador da Teoria das Inteligências Múltiplas, que propõe vários tipos de inteligência além daquela medida por testes de Q.I. Na Europa, acontece o mesmo. O Reino Unido é um bom exemplo. No fim de 2010, a Secretaria de Educação anunciou uma reforma no ensino que inclui o “retorno aos valores tradicionais”: mais conteúdo, mais disciplina – e até a obrigatoriedade de roupas s mais formais na rede pública, com aventais para as meninas e terno e gravata para os meninos. No anúncio, o secretário Michael Gove mostrou sua preocupação com a queda do país nos rankings mundiais de educação. “Vamos voltar ao topo”, disse.
O ensino tradicional ganhou ainda mais adeptos recentemente com o lançamento do livro Grito de guerra da mãe tigre. Nele, a advogada sino-americana Amy Chua relata sua experiência na criação de duas filhas com rigidez e exigências que beiravam o absurdo. Ambas eram proibidas de ficar abaixo do 1o lugar na classe e tinham de realizar atividades extracurriculares dificílimas escolhidas pela mãe – uma se tornou exímia violinista e a outra pianista. Pela defesa desses padrões quase marciais de ensino, Amy chegou a ser ameaçada de morte na internet. Mas seu livro entrou rapidamente na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos. Isso expõe o medo de toda a nação de se ver rebaixada nas listas internacionais de melhores alunos.
Para quem consegue seguir em frente e encarar tantas exigências, o ensino tradicional pode dar certo. Giulianna Freitas, de 12 anos, cursa o 7o ano do colégio Dante Alighieri, um dos mais antigos e tradicionais de São Paulo. Está lá desde os 3 anos. Ela diz que adora. Afirma tirar de letra as regras rígidas da escola, entre elas uniforme impecável e as restrições ao contato afetivo entre meninas e meninos. “Não me vejo em outro colégio”, diz. Sua mãe, a dentista Ana Claudia Garcia de Freitas, afirma ter escolhido o Dante pelos ótimos laboratórios e pelas bibliotecas. E também por ter sido sua escola – e a de sua mãe. “É uma tradição na família.”
Mas os educadores têm visto com ceticismo cada vez maior o sucesso desse modelo. Eles alertam sobre vários problemas que decorrem da estratégia convencional, baseada na combinação de competitividade e pressão por notas. A primeira limitação é a seleção natural que põe em prática. Esses colégios selecionam os alunos na hora da matrícula – com os famosos “vestibulinhos” – e, depois disso, acabam selecionando, pelo grau de dificuldade em acompanhar o ritmo, aqueles que ficam. “Valorizamos o conteúdo e somos inflexíveis em nossa filosofia de foco no professor, cultura clássica e disciplina”, diz Maria Elisa Penna Forte, supervisora do colégio carioca São Bento, que só aceita meninos e foi quatro vezes campeão nacional do Enem. “Os pais querem que os filhos se saiam bem aqui, mas, em muitos casos, isso não acontece. Aí o melhor é mudar de escola.”
A pressão por boas notas pode causar estresse e doenças emocionais. E não garante sucesso no futuro
São escolas que, naturalmente, funcionam para os melhores. E os melhores, por motivos óbvios, não são todos. Nem sequer são a maioria. “No caso das escolas tradicionais e seus vestibulinhos, não são os pais que escolhem a escola. É a escola que acaba escolhendo os alunos que quer”, diz Victor Paro, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Para ele, essa situação põe em xeque a própria qualidade desse tipo de ensino. Essas instituições têm as melhores médias de desempenho por terem a melhor pedagogia ou porque os alunos que passam pelo funil são os mais inteligentes, portanto serão os melhores, independentemente do método de ensino? “Certamente, elas têm valor. Mas é fato que, para entrar, os alunos já têm de ser bons”, diz Paro.




SENSIBILIDADE
A estudante de artes Chanel Rodrigues, de 18 anos, faz desenhos em casa, no Rio. Ela entrou em depressão nos anos em que estudou em um colégio tradicional



Uma das grandes dificuldades dos pais é aceitar que a maioria dos filhos não se enquadra ou não tem condição de acompanhar o grau de exigência das escolas mais competitivas. Alguns pais acreditam que tirar o filho da escola mais conceituada é sinal de fracasso. Insistem nela – e isso acaba pesando ainda mais sobre os ombros do estudante. “A criança sofre porque não tem o perfil para aquele tipo de colégio”, diz Fábio Barbirato, chefe do setor de Neuropsiquiatria da Infância e da Adolescência da Santa Casa, no Rio de Janeiro. “Os pais precisam conhecer o perfil de seus filhos.”
A política de seleção dos melhores não pode servir para educar a média das crianças, uma exigência social. Não há nada a opor a uma política de seleção rigorosa. Mas um país que precisa oferecer educação de qualidade para todos precisa se preocupar com aqueles que não passam por esse funil – a ampla maioria.
O ambiente de alta pressão tem ainda um custo emocional para aqueles que não se adaptam. Em geral, aumenta o nervosismo da criança, que fica exposta a um grau elevado de exigência antes de ter amadurecido. Os sintomas são noites maldormidas ou mesmo crises nervosas antes de algumas provas. Em alguns casos, o peso da cobrança pode gerar traumas. O médico Barbirato tem promovido uma cruzada contra os transtornos de ansiedade causados pela vida escolar. Diz que, diariamente, na clínica e em seu consultório particular, atende crianças em sofrimento decorrente da pressão dos estudos. Para Jorge Harada, chefe da área de Saúde Escolar da Sociedade Brasileira de Pediatria, o estresse dessas escolas desencadeia um processo orgânico que pode levar à perda da imunidade e causar até anemia. “Vivemos numa sociedade competitiva, mas a escola não pode ser uma fábrica de pessoas em série. É preciso respeitar as singularidades de cada um”, diz.





MOTIVAÇÃO
Artur e Olívia na Escola Parque, de linha construtivista, no Rio de Janeiro. A mãe deles os tirou de uma escola tradicional, embora tivessem boas notas.
Ela diz que eles estavam “no automático”








Nos Estados Unidos, a mãe de uma adolescente que recebeu diagnóstico de estresse agudo não se conformou em reclamar com a escola sobre o ritmo puxado das aulas e lições de casa. A advogada Vicki Abeles, depois de perceber que o drama de sua filha era vivido também em outras famílias, fez um documentário sobre o que chamou de massacre do ensino competitivo, imposto em quase todas as redes de escolas públicas americanas graças a incentivos do governo. O documentário, que ouviu dezenas de alunos e famílias que desenvolveram doenças emocionais por causa da alta pressão, virou sensação. Já arrecadou mais de R$ 10 milhões (custou R$ 800 mil), sem exibições em cinemas, apenas em escolas ou auditórios. “Quero que minhas filhas cresçam saudáveis e criativas. Não acredito no ensino que educa para tirar boas notas em rankings”, afirma Vicki (leia a entrevista na página 95).
Apesar da expectativa dos pais, o ensino tradicional, também não garante sucesso na carreira. “Mesmo no caso de crianças que suportam a pressão das escolas tradicionais, não existe certeza de que serão adultos bem-sucedidos”, diz Quezia Bombonato. “Muitas vezes são alunos com capacidade de absorção de conteúdos e boa memória, mas cujos dons específicos não são devidamente explorados.” Segundo Quezia, o processo completo de aprendizado de um jovem é formado de muitas variáveis. Se o que ele aprende não faz sentido para a vida, isso poderá ser percebido num futuro mais distante, quando ele estiver frente a frente com suas decisões profissionais. “As pressões que ele sofreu nos bancos escolares podem se transformar em problemas de percepção ou relacionamento na vida adulta, comprometendo o sucesso de suas realizações”, diz ela.
Diante dos efeitos colaterais da pressão educacional, muitos pais se voltam para as escolas com propostas alternativas. Elas não têm uma fórmula única e vêm se desenvolvendo desde os anos 1960, com propostas pedagógicas modernas. Esses métodos de ensino começaram a ganhar relevância nos anos 1970, quando novas teorias sobre como as crianças aprendem começaram a ser usadas pelas escolas. No geral, elas priorizam o estímulo aos talentos pessoais, as artes, o contato com a natureza e o lado emocional dos alunos. O método mais difundido no Brasil é o construtivista, inspirado nas ideias do psicólogo suíço Jean Piaget, segundo o qual as crianças aprendem em conjunto e sempre usando a realidade de cada um como referência. A linha montessoriana, proposta pela pedagoga italiana Maria Montessori, foi uma das primeiras a inserir questões afetivas na educação. Na pedagogia Waldorf, do filósofo alemão Rudolf Steiner, o aprendizado anda de mãos dadas com atividades corporais e artesanais. Com resultados não tão satisfat ios em avaliações nacionais, muitas dessas escolas se reorganizaram para melhorar sua competitividade. Hoje, tentam combinar o melhor dos dois mundos, incorporando parte da disciplina e da exigência de bom desempenho das escolas tradicionais.
Para alguns pais, só o ensino de alto desempenho garante um futuro de sucesso para os filhos
Essas alternativas também podem ser um caminho para o sucesso na vida real. Os americanos Larry Page e Sergei Brin, fundadores do Google, estudaram em escola montessoriana. Eles afirmam que a escola é um dos principais fatores de seu êxito empreendedor. Lá, segundo eles, aprenderam a trabalhar sozinhos, com ideias próprias. Dizem que a educação montessoriana lhes deu liberdade para perseguir seus sonhos e paixões. Outros inovadores da era digital, como Jeff Bezos, fundador da loja virtual Amazon, e Jimmy Wales, criador da Wikipédia, também vieram de escolas montessorianas. s
Um dos apelos dessas linhas alternativas é oferecer um ensino que pretende despertar mais iniciativa e a criatividade das crianças. Isso pode ser salutar mesmo para os alunos que, aparentemente, se dão bem no esquema das escolas competitivas. Foi o que percebeu a empresária carioca Tatiana Queiroz, mãe de Artur, de 15 anos, e Olívia, de 12. “Eles tiravam boas notas, mas faziam tudo no automático. Sentia que não estavam motivados. O conteúdo era muita memorização e pouca análise”, diz. Quando os filhos entraram no ensino fundamental, Tatiana optou pelo tradicional Colégio Santo Inácio, pelos bons resultados nos rankings e pela disciplina que complementava os limites que ela estabelecia em casa. Com o tempo, sentiu falta de mais estímulo criativo para os filhos.
A maioria dos colégios tradicionais tem classes numerosas, e, por isso, o diálogo casa-escola fica difícil. Há dois anos, ela transferiu os dois filhos para um colégio alternativo. A coordenadora pedagógica do Santo Inácio, Ana Maria Loureiro, diz que a tradição dá segurança a quem procura a escola. Segundo ela, 70% dos alunos são filhos de ex-alunos. Um sinal de sucesso da instituição. “Mas estamos buscando a modernidade, especialmente no que diz respeito às novas tecnologias e à necessidade de formar professores antenados com a realidade”, afirma.
Diante das críticas, as escolas tradicionais tentam se renovar. Para conciliar educação de qualidade sem sofrer as consequências indesejadas, começam a buscar o caminho do meio. O colégio marista São José, no Rio, mantém suas aulas de religião, mas introduziu aulas especiais para ensinar os alunos a associar o mundo atual ao que é estudado. A ideia reforça a tendência de que mais importante do que decorar informação é saber analisá-la. No Dante, segundo seu diretor, Lauro Spaggiari, há a filosofia de que é preciso trabalhar apenas com o essencial do conteúdo e muita discussão, mas sem abrir mão do rigor na disciplina. “Não vivemos mais no tempo em que o professor era o único provedor da informação”, diz Spaggiari. “Sabemos que, em tempos de internet, a informação está ao alcance de todos. Nosso papel principal é ensinar ao aluno o que fazer com ela.”
Mesmo que essas escolas consigam se atualizar, ainda assim não serão o modelo ideal para todas as crianças. A família da auxiliar administrativa Fernanda Sato descobriu de forma inusitada que não há um único caminho para a educação dos filhos. Há cinco anos, mudou-se para um bairro em São Paulo onde os filhos, Gustavo e Leonardo, na época com 10 e 7 anos, iriam a pé para o novo colégio, de estilo tradicional e dirigido por freiras. Por quatro anos, o plano funcionou. No fim de 2010, os meninos procuraram os pais com um pedido: queriam mudar de escola. Para complicar, cada um pediu um colégio. Leonardo, o mais novo, não gostava do método tradicional. “Ele não reagia bem às cobranças dos professores e começou a perder o interesse pelos estudos”, diz Fernanda. Gustavo, fã da área de exatas, pediu para estudar num colégio ainda mais rigoroso, com carga horária pesada, muita competição e voltado para o vestibular. “Penso em ser engenheiro e queria uma escola que me preparasse melhor”, afirma. Hoje, a logística da família ficou mais complicada, mas Fernanda não se arrepende. “Descobri que cada filho é de um jeito.”

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Os tabus e as neuroses obsessivas

Assistir o documentário Tabu - Práticas perturbadoras, exibido pela Nat Geo, é para quem tem estômago, ou melhor, para deixá-lo vazio, pois segue o raciocínio "se assistir não jante!" Mas, o que nos faz obedecer certos tabus em nossa sociedade e ao mesmo tempo repudiar outros em diferentes culturas? 

Percebe-se que não só os ritos e cerimônias estão sujeitos às interdições ou obediências dos tabus, mas pode-se encontrar estas mesmas características ritualísticas e rigorosas em muitas pessoas. Me lembro da cena do filme Melhor Impossível (1997), onde Melvin (Jack Nicholson) ao entrar em casa precisa girar a chave um determinado número de vezes, assim como acender e apagar a luz. Me lembrei também de uma cena da minha infância, que era o seguinte: quando alguém via um calçado meu virado de cabeça para baixo diziam: 

- Se não desvirar seu chinelo sua mãe vai amanhecer morta!  

Nem preciso dizer que em minha casa não existem sapatos virados com a sola para cima... Esquisitices à parte, existe mesmo uma ligação para estas situações? Mas, qual seria?

Freud afirma em seu textoTotem e tabu, de 1913, que o termo "tabu" vem da Polinésia, o que em outros locais possui nomes diferentes, assim como a palavra "sacer" para os romanos, "ayos" para os gregos e, provavelmente a palavra "kadesh" dos hebreus, possuíam a mesma significação. O significado de tabu aponta para dois sentidos contrários, por um lado significa sagrado, e por outro assume também o tom de misterioso, proibido, impuro.

Tanto de um lado quanto de outro, temos que o termo tabu tem o caráter restritivo, porém distinto das restrições morais ou religiosas. Apesar do tabu não se basear em nenhuma ordem divina, pode-se dizer que se impõe por sua conta própria. É também diferente das proibições morais por não se enquadrar em nenhum sistema que diga que certas abstinências devem ser observadas e apresente motivos para tal necessidade. "As proibições dos tabus não têm fundamento e são de origem desconhecida. Embora sejam ininteligíveis para nós, para aqueles que por elas são dominados são aceitas como coisa natural", afirma Freud.

Os tabus abrangem o caráter sagrado ou impuro de pessoas ou coisas, a espécie de proibição resultante desse caráter, e a santidade (ou impureza) que retorna de uma violação da proibição. Seus objetivos são numerosos, dentre eles, visam à proteção de pessoas importantes contra o mal, ou então protegem os fracos, como as crianças, mulheres e pessoas comuns em geral, da influência mágica de chefes e sacerdotes; à precaução contra os perigos oriundos do contato com cadáveres, ou ingestão de certos alimentos; à guarda dos principais momentos da vida (nascimento, iniciação, casamento e atividades sexuais) contra interferências; servem também para proteger o povo contra a ira dos deuses e espíritos; e muitas vezes, os tabus protegem a propriedade de um indivíduo contra eventuais ladrões. Por detrás destas proibições parece haver uma espécie de teoria de que elas são necessárias, onde certas pessoas ou coisas estejam carregadas de um poder perigoso que pode ser transferido através do contato, quase como uma infecção. Via de regra, a violação de um tabu transforma o próprio transgressor num tabu.

Freud aproxima a ideia dos tabus com as proibições das neuroses obsessivas, sendo ambas destituídas de motivos e misteriosas em suas origens. Surgida em um momento não especificado, a proibição obsessiva é forçosamente mantida por um medo irresistível, sem que para isso, seja apresentada uma ameaça externa de punição. Há sim, uma certeza interna, uma convicção moral de que qualquer violação conduziria à desgraça insuportável. "O máximo que um paciente obsessivo pode dizer sobre esse ponto é que tem uma sensação indefinida de que determinada pessoa do seu ambiente será atingida como resultado da violação." Estas ideias obsessivas estão extremamente sujeitas ao mecanismo que Freud descreve como deslocamento. Estendem-se de um objeto a outro por quaisquer caminhos que possa proporcionar a esse novo objeto (pessoa, objeto, determinada ação, ou até mesmo um pensamento) um caráter de "impossível", até que finalmente o mundo inteiro jaz sob um embargo de "impossibilidade", pois tudo àquilo que possa entrar em contato com o objeto proibido, assume também suas características.

Um ponto determinante destas ideias obsessivas liga-se à infância, mais especificamente a uma repressão infantil. Os motivos da proibição (que é consciente - a proibição e não os motivos), permanecem desconhecidos (inconscientes) e todos os esfoços para eliminá-los através de processos intelectuais tendem a falhar, pois não encontram qualquer base de ataque. A proibição deve sua força e seu caráter obsessivo ao seu oponente inconsciente, a um desejo oculto que se desloca constantemente, a fim de fugir do impasse, e se esforça em encontrar objetos e/ou atos substitutos para colocar no lugar dos proibidos. Como consequência disto, a própria proibição também se desloca de um lado para outro, estendendo-se a quaisquer novos objetivos que o impulso possa adotar.

Freud propõe que temos uma contrapartida exata do ato obsessivo, no qual o impulso suprimido e o impulso que o suprime encontram uma satisfação simultânea e comum. O ato obsessivo é ostensivamente (parte consciente) uma proteção contra o ato proibido, mas na realidade (parte inconsciente) trata-se de uma repetição deste.

"(...) descobrimos que um dos aspectos do caráter dos neuróticos obsessivos é uma escrupulosa conscienciosidade que é um sintoma reagindo contra a tentação a espreitar no inconsciente. Se a doença se torna mais aguda, desenvolvem um senso de culpa do mais intenso grau."

Caso os impulsos cheios de desejo forem reprimidos, sua libido se transformará em ansiedade, inerente à sensação de culpa correspondente ao fator desconhecido. O que se escuta dos pacientes obsessivos em análise é que caso efetue alguma ação proibida, o castigo cairá sobre uma outra pessoa, via de regra, não enunciada, mas em geral uma pessoa próxima e querida, enquanto que a violação dos tabus recaem sobre quem quer que tenha sido responsável pela desonra.

O fato de não aceitarmos alguns costumes diferentes aos nossos, reforçam a ideia de que estas pessoas sejam impuras, a culpa que lhes falta, assumimos que "tarda, mas não falha" e o castigo logo lhes cairá. Da mesma forma, os rituais obsessivos também devem ser seguidos rigorosamente, pois seu descumprimento trará graves consequências. Enquanto puderem ser mantidos, tudo bem! Mas, e quando estes tabus e rituais acabam ocupando toda uma existência? Ah, duvida?! Pois, deixe de conferir se realmente trancou a porta esta noite pra ver o que acontece...

Tabus - Práticas Perturbadoras: http://www.fileserve.com/file/FWHUc53



Campanha sobre doação de órgãos

Antes e depois de algumas pinturas famosas







sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Minhas tardes com Margueritte



"Um encontro pouco comum,
entre o amor e a ternura,
não tinha outra coisa.
Tinha nome de flor
e vivia entre as palavras.
Adjetivos rebuscados,
verbos que cresciam como a grama,
alguns ficavam.
Entrou suavemente desde o córtex
até o meu coração.
Nas histórias de amor
há mais que amor.
Às vezes
não há nenhum 'eu te amo',
mas se amam.
Um encontro pouco comum.
Eu a conheci por acaso no parque.
Ela não ocupava muito espaço,
era do tamanho de uma pomba
com as suas penas
Envolta em palavras, em nomes,
como o meu.
Ela me deu um livro, e outro,
e as páginas se iluminaram.
Não morra agora,
há tempo, espere.
Não é a hora, florzinha.
Me dê um pouco mais de você.
Me dê um pouco mais da sua vida.
Espere.
Nas histórias de amor
há mais que amor.
Às vezes
não há nem um 'eu te amo'
mas se amam."

A carta roubada

 
Edgar Allan Poe (1912)


Nil sapientiae odiosus acumine nimio.
Sêneca



Em Paris, justamente depois de escura e tormentosa noite, no outono do ano 18..., desfrutava eu do duplo luxo da meditação e de um cachimbo feito de espuma-do-mar, em companhia de meu amigo Auguste Dupin, em sua pequena biblioteca, ou gabinete de leitura, situado no terceiro andar da Rua Dunôt, 33, Faubourg Saint-Germain. Durante uma hora, pelo menos, mantínhamos profundo silêncio; cada um de nós, aos olhos de algum observador casual, teria parecido intensa e exclusivamente ocupado com as volutas de fumaça que tornavam densa a atmosfera do aposento. Quanto a mim, no entanto, discutia mentalmente certos tópicos que haviam constituído o assunto da conversa entre nós na primeira parte da noite. Retiro-me ao caso da Rua Morgue e ao mistério que envolvia o assassínio de Marie Rogêt. Pareceu-me, pois, quase que uma coincidência, quando a porta de nosso apartamento se abriu e entrou o nosso velho conhecido, Monsieur G..., delegado de polícia de Paris.

Recebemo-lo com cordialidade, pois havia nele tanto de desprezível como de divertido, e não o víamos havia já vários anos. Tínhamos estado sentados no escuro e, a entrada do visitante, Dupin se ergueu para acender a luz, mas sentou-se de novo sem o fazer, depois que G... nos disse que nos visitava para consultar-nos, ou melhor, para pedir a opinião de meu amigo sobre alguns casos oficiais que lhe haviam causado grandes transtornos.

- Se se trata de um caso que requer reflexão - disse Dupin -, desistindo de acender a mecha, será melhor examinado no escuro.

- Esta é outra de suas estranhas idéias - comentou o delegado, que tinha o costume de 'chamar "estranhas" todas as coisas que estavam além de sua compreensão e que, desse modo, vivia em meio de uma legião inteira de "estranhezas".

- Exatamente - disse Dupin, enquanto oferecia um cachimbo ao visitante e empurrava para junto dele uma confortável poltrona.

- E qual é agora a dificuldade? - perguntei. - Espero que não seja nada que se refira a assassinos.

- Oh, não! Nada disso! Trata-se, na verdade, de um caso muito simples, e não tenha dúvida de que podemos resolvê-lo satisfatoriamente. Mas, depois, pensei que Dupin talvez gostaria de conhecer alguns de seus pormenores, que são bastante estranhos.

- Um caso simples e estranho - comentou Dupin.

- Sim, realmente; mas por outro lado, não é nem uma coisa nem outra. O fato é que todos nós ficamos muito intrigados, pois, embora tão simples, o caso escapa inteiramente a nossa compreensão.

- Talvez seja a sua própria simplicidade que os desorienta - disse o meu amigo.

- Ora, que tolice - exclamou o delegado, rindo cordialmente.

- Talvez o mistério seja um pouco simples demais - disse Dupin.

- Oh, Deus do céu! Quem já ouviu tal coisa?

- Um pouco evidente demais.

O delegado de polícia prorrompeu em sonora gargalhada, divertindo-se a valer:

- Oh, Dupin, você ainda acaba por me matar de riso!

- E qual é, afinal de contas, o caso em apreço? - perguntei.

- Pois eu lhes direi - respondeu o delegado, refestelando-se na poltrona, enquanto tirava longa e meditativa baforada do cachimbo. - Direi tudo em poucas palavras; mas, antes de começar, permitam-me recomendar que este caso exige o maior sigilo. Perderia, provavelmente, o lugar que hoje ocupo, se soubessem que eu o confiei a alguém.

- Continue - disse eu.

- Ou não diga nada - acrescentou Dupin.

- Bem. Recebi informações pessoais, de fonte muito elevada, de que certo documento da máxima importância foi roubado dos aposentos reais. Sabe-se quem foi a pessoa que o roubou. Quanto a isso, não há a menor dúvida; viram-na apoderar-se dele. Sabe-se, também, que o documento continua em poder da referida pessoa.

- Como se sabe disso? - indagou Dupin.

- É coisa que se deduz claramente - respondeu o delegado - pela natureza de tal documento e pelo fato de não terem surgido certas consequências que surgiriam incontinente, se o documento não estivesse ainda em poder do ladrão, isto é, se já houvesse sido utilizado com o fim que este último se propõe.

- Seja um pouco mais explícito - pedi.

- Bem, atrevo-me a dizer que esse documento dá a quem o possua um certo poder, num meio em que tal poder é imensamente valioso. O delegado apreciava muito as tiradas diplomáticas.

- Ainda não entendo bem - disse Dupin.

- Não? Bem. A exibição desse documento a uma terceira pessoa, cujo nome não mencionarei, comprometeria a honra de uma personalidade da mais alta posição, e tal fato concede à pessoa que possui o documento ascendência sobre essa personalidade ilustre, cuja honra e tranqüilidade se acham, assim, ameaçadas.

- Mas essa ascendência - intervim - depende de que o ladrão saiba que a pessoa roubada o conhece. Quem se atreveria.

- O ladrão - disse G... - é o Ministro D..., que se atreve a tudo, tanto o que é digno como o que é indigno de um homem. O roubo foi cometido de modo não só engenhoso como ousado. O documento em questão... uma carta, para sermos francos, foi recebida pela personalidade roubada quando esta se encontrava a sós em seus aposentos. Quando a lia, foi subitamente interrompida pela entrada de outra personalidade de elevada posição, de quem desejava particularmente ocultar a carta. Após tentar às pressas, e em vão, metê-la numa gaveta, foi obrigada a colocá-la, aberta como estava, sobre uma mesa. O sobrescrito, porém, estava em cima e o conteúdo, por conseguinte, ficou resguardado. Nesse momento, entra o Ministro D... Seus olhos de lince percebem imediatamente a carta, e ele reconhece a letra do sobrescrito, observa a confusão da destinatária e penetra em seu segredo. Depois de tratar de alguns assuntos, na sua maneira apressada de sempre, tira do bolso uma carta parecida com a outra em questão, abre-a, finge lê-la e, depois, coloca-a bem ao lado da primeira. Torna a conversar, durante uns quinze minutos, sobre assuntos públicos. Por fim, ao retirar-se, tira de cima da mesa a carta que não lhe pertencia. Seu verdadeiro dono viu tudo, certamente, mas não ousou chamar-lhe a atenção em presença da terceira personagem, que se achava ao seu lado. O ministro retirou-se, deixando sua carta - uma carta sem importância - sobre a mesa.  

- Aí tem você - disse-me Dupin - exatamente o que seria necessário para tornar completa tal ascendência: o ladrão sabe que a pessoa roubada o conhece.

- Sim - confirmou o delegado - e o poder conseguido dessa maneira tem sido empregado, há vários meses, para fins políticos, até um ponto muito perigoso. A pessoa roubada está cada dia mais convencida de que é necessário reaver a carta. Mas isso, por certo, não pode ser feito abertamente. Por fim, levada ao desespero, encarregou-me dessa tarefa.

- Não lhe teria sido possível, creio eu - disse Dupin, em meio a uma perfeita espiral de fumaça -, escolher ou sequer imaginar um agente mais sagaz.

- Você me lisonjeia - respondeu o delegado -, mas é possível que haja pensado mais ou menos isso.

- Está claro, como acaba de observar - disse eu -, que a carta se encontra ainda em poder do ministro, pois é a posse da carta, e não qualquer emprego da mesma, que lhe confere poder. Se ele a usar, o poder se dissipa.

- Certo - concordou G... - e foi baseado nessa convicção que principiei a agir. Meu primeiro cuidado foi realizar uma pesquisa completa no hotel em que mora o ministro. A principal dificuldade reside no fato de ser necessário fazer tal investigação sem que ele saiba. Além disso preveniram-me do perigo, caso ele venha a suspeitar de nosso propósito. - Mas - disse eu - o senhor está perfeitamente a par dessas investigações. A polícia parisiense já fez isso muitas vezes, anteriormente.

- É verdade. Por essa razão, não desesperei. Os hábitos do ministro me proporcionam, sobretudo, uma grande vantagem. Com freqüência, passa a noite toda fora de casa. Seus criados não são numerosos. Dormem longe do apartamento de seu amo e, como quase todos são napolitanos, não é difícil fazer com que se embriaguem. Como sabe, tenho chaves que podem abrir qualquer aposento ou gabinete em Paris. Durante três meses, não houve uma noite sequer em que eu não me empenhasse, pessoalmente em esquadrinhar o Hotel D... Minha honra está em jogo e, para mencionar um grande segredo, a recompensa é enorme. De modo que não abandonarei as pesquisas enquanto não me convencer inteiramente de que o ladrão é mais astuto do que eu. Creio haver investigado todos os cantos e esconderijos em que o papel pudesse estar oculto.

- Mas não seria possível - lembrei - que, embora a carta possa estar em poder do ministro, como indiscutivelmente está, ele a tenha escondido em outro lugar que sua própria casa?

- É pouco provável - respondeu Dupin. - A situação atual, particularíssima, dos assuntos da corte e principalmente as intrigas em que, como se sabe, D... anda envolvido, fazem da eficácia imediata do documento - da possibilidade de ser apresentado a qualquer momento - um ponto quase tão importante quanto a sua posse.

- A possibilidade de ser apresentado? - perguntei.

- O que vale dizer, de ser destruído - disse Dupin.

- É certo - observei. - Não há dúvida de que o documento se encontra nos aposentos do ministro. Quanto a estar consigo próprio, guardado em seus bolsos, é coisa que podemos considerar como fora da questão.

- De acordo - disse o delegado. Por duas vezes, já fiz com que fosse revistado, sob minhas próprias vistas, por batedores de carteiras.

- Podia ter evitado todo esse trabalho - comentou Dupin. - D..., creio eu, não é inteiramente idiota e, assim, deve ter previsto, como coisa corriqueira, essas "revistas".

- Não é inteiramente tolo - disse G... -, mas é poeta, o que o coloca não muito distante de um tolo.

- Certo - assentiu Dupin, após longa e pensativa baforada de seu cachimbo -, embora eu também seja culpado de certos versos.

- Que tal se nos contasse, com pormenores, como se processou a busca? - sugeri.

- Pois bem. Examinamos, demoradamente, todos os cantos. Tenho longa experiência dessas coisas. Vasculhamos o edifício inteiro, quarto por quarto, dedicando as noites de toda uma semana a cada um deles. Examinamos, primeiro, os móveis de cada aposento. Abrimos todas as gavetas possíveis, e presumo que os senhores saibam que, para um agente de polícia devidamente habilitado, não existem gavetas secretas. Seria um bobalhão aquele que permitisse que uma gaveta "secreta" escapasse à sua observação numa pesquisa como essa. A coisa é demasiado simples. Há um certo tamanho - um certo espaço - que se deve levar em conta em cada escrivaninha. Além disso, dispomos de regras precisas. Nem a quinquagésima parte de uma linha nos passaria despercebida. Depois das mesas de trabalho, examinamos as cadeiras. As almofadas foram submetidas ao teste das agulhas. que os senhores já me viram empregar. Removemos a parte superior das mesas.

- Para quê?

- As vezes, a parte superior de uma mesa, ou de outro móvel semelhante, é removida pela pessoa que deseja ocultar um objeto; depois, a perna é escavada, o objeto depositado dentro da cavidade e a parte superior recolocada em seu lugar. Os pés e a parte superior das colunas das camas são utilizados para o mesmo fim.

- Mas não se poderia descobrir a parte oca por meio de som? - perguntei.

- De modo algum, se quando o objeto lá colocado for envolto por algodão. Além disso, em nosso caso, somos obrigados a agir sem fazer barulho.

- Mas o senhor não poderia ter removido... não poderia ter examinado, peça por peça, todos os móveis em que teria sido possível ocultar alguma coisa da maneira a que se referiu. Uma carta pode ser transformada em minúscula espiral, não muito diferente, em forma e em volume, de uma agulha grande de costura e, desse modo, pode ser introduzida na travessa de uma cadeira, por exemplo. Naturalmente, o senhor não desmontou todas as cadeiras, não é verdade?

- Claro que não. Mas fizemos melhor: examinamos as travessas de todas as cadeiras existentes no hotel e, também, as juntas de toda a espécie de móveis. Fizemo-lo com a ajuda de poderoso microscópio. Se houvesse sinais de alterações recentes, não teríamos deixado de notar imediatamente. Um simples grão de pó de verruma, por exemplo, teria sido tão evidente como uma maçã. Qualquer alteração na cola - qualquer coisa pouco comum nas junturas - seria o bastante para chamar-nos a atenção.

- Presumo que examinaram os espelhos, entre as tábuas e os vidros, bem como as camas, as roupas de cama, as cortinas e os tapetes.

- Naturalmente! E, depois de examinar desse modo, com a máxima minuciosidade, todos os móveis, passamos a examinar a própria casa. Dividimos toda a sua superfície em compartimentos, que eram por nós numerados, a fim de que nenhum pudesse ser esquecido. Depois, vasculhamos os aposentos palmo a palmo, inclusive as duas casas contíguas. E isso com a ajuda do microscópio, como antes.

- As duas casas contíguas?! - exclamei. - Devem ter tido muito trabalho!

- Tivemos. Mas a recompensa oferecida é, como já disse, muito grande.

- Incluíram também os terrenos dessas casas?

- Todos os terrenos são revestidos de tijolos. Deram-nos, relativamente, pouco trabalho. Examinamos o musgo existente entre os tijolos, verificamos que não havia nenhuma alteração.

- Naturalmente, olharam também os papéis de D... E os livros da biblioteca?

- Sem dúvida. Abrimos todos os pacotes e embrulhos, e não só abrimos todos os volumes, mas os folheamos página por página, sem que nos contentássemos com uma simples sacudida, como é hábito entre alguns de nossos policiais. Medimos também a espessura de cada encadernação, submetendo cada uma delas ao mais escrupuloso exame microscópico. Se qualquer encadernação apresentasse sinais de que havia sofrido alteração recente, tal fato não nos passaria despercebido. Quanto a uns cinco ou seis volumes, recém-chegados das mãos do encadernador, foram por nós cuidadosamente examinados, em sentido longitudinal, por meio de agulha.

- Verificaram os assoalhos, embaixo dos tapetes?

- Sem dúvida. Tiramos todos os tapetes e examinamos as tábuas do assoalho com o microscópio.

- E o papel das paredes?

- Também.

- Deram uma busca no porão?

- Demos.

- Então - disse eu - os senhores se enganaram, pois a carta não está na casa, como o senhor supõe.

- Temo que o senhor tenha razão quanto a isso, concordou o delegado. E agora Dupin, que é que aconselharia fazer?

- Uma nova e completa investigação na casa.

- Isso é inteiramente inútil - replicou G... - Não estou tão certo de que respiro como de que a carta não está no hotel.

- Não tenho melhor conselho para dar-lhe - disse Dupin. - O senhor, naturalmente, possui uma descrição precisa da carta, não é assim?

- Certamente!

E, aqui, tirando do bolso um memorando, o delegado de polícia pôs-se a ler, em voz alta, uma descrição minuciosa do aspecto interno e, principalmente, externo do documento roubado. Logo depois de terminar a leitura, partiu muito mais deprimido do que eu jamais o vira antes.

Decorrido cerca de um mês, fez-nos outra visita, e encontrou-nos entregues à mesma ocupação que na vez anterior. Apanhou um cachimbo e uma poltrona e passou a conversar sobre assuntos corriqueiros. Por fim, perguntei:

- Então, Monsieur G..., que nos diz da carta roubada? Suponho que se convenceu, afinal, de que não é coisa simples ser mais astuto que o ministro.

- Que o diabo carregue o ministro! - exclamou.

Sim, realizei, apesar de tudo, um novo exame, como Dupin sugeriu. Mas trabalho perdido, como eu sabia que seria.

- Qual foi a recompensa oferecida, a que se referiu? - indagou Dupin.

- Ora, uma recompensa muito grande ... muito generosa... Mas não me agrada dizer quanto, precisamente. Direi, no entanto, que não me importaria de dar, de meu cheque cinqüenta mil francos a quem conseguisse obter essa carta. A verdade é que ela se torna, a cada dia que passa, mais importante... e a recompensa foi, ultimamente, dobrada. Mas, mesmo que fosse triplicada, eu não poderia fazer mais do que já fiz.

- Pois sim - disse Dupin, arrastando as palavras, entre as baforadas de seu cachimbo de espuma -, realmente. Parece-me... no entanto... G... que não se esforçou ao máximo quanto a este assunto... Creio que poderia fazer um pouco mais, bem?

- Como? De que maneira?

- Ora (baforada), poderia (baforada) fazer uma consulta sobre este assunto, hein? (baforada). Lembra-se da história que se conta a respeito de Abernethy?

- Não. Que vá para o diabo Abernethy!

- Sim, que vá para o diabo e seja bem recebido! Mas, certa vez, um avarento rico concebeu a idéia de obter de graça uma consulta de Ahernethy. Com tal fim, durante uma conversa entre um grupo de amigos, insinuou o seu caso ao médico, como se se tratasse do caso de um indivíduo imaginário.

- "Suponhamos" - disse o avaro - que seus sintomas sejam tais e tais. Nesse caso, que é que o doutor lhe aconselharia tomar?"

- "Tomar! Aconselharia, claro, que tomasse um conselho."

- Mas - disse o delegado, um tanto desconcertado - estou inteiramente disposto a ouvir um conselho e a pagar por ele. Daria, realmente, cinqüenta mil francos a quem quer que me ajudasse nesse assunto.

- Nesse caso - respondeu Dupin, abrindo uma gaveta e retirando um livro de cheques - pode encher um cheque nessa quantia. Quando o houver assinado, eu lhe entregarei a carta.

Fiquei perplexo. O delegado parecia fulminado por um raio. Durante alguns minutos, permaneceu mudo e imóvel, olhando, incrédulo e boquiaberto, o meu amigo, com os olhos quase a saltar-lhe das órbitas. Depois, parecendo voltar, de certo modo, a si, apanhou uma caneta e, após várias pausas e olhares vagos, preencheu, finalmente, um cheque de cinqüenta mil francos, entregando-o, por cima da mesa, a Dupin. Este o examinou cuidadosamente e o colocou na carteira; depois, abrindo uma escrivaninha, tirou dela uma carta e entregou-a ao delegado de polícia. O funcionário apanhou-a tomado como que de um espasmo de alegria. Abriu-a com mãos trêmulas, lançou rápido olhar ao seu conteúdo e, depois, agarrando a porta e lutando por abri-la, precipitou-se, por fim, sem a menor cerimônia, para fora do apartamento e da casa, sem proferir uma única palavra desde o momento em que Dupin lhe pediu para preencher o cheque.

Depois de sua partida, meu amigo entrou em algumas explicações.

- A polícia parisiense - disse ele - é extremamente hábil à sua maneira. Seus agentes são perseverantes, engenhosos, astutos e perfeitamente versados nos conhecimentos que seus deveres parecem exigir de modo especial. Assim, quando G... nos contou, pormenorizadamente, a maneira pela qual realizou suas pesquisas no Hotel D..., não tive dúvida de que efetuara uma investigação satisfatória... até o ponto a que chegou o seu trabalho.

- Até o ponto a que chegou o seu trabalho? - perguntei.

- Sim - respondeu Dupin. - As medidas adotadas não foram apenas as melhores que poderiam ser tomadas, mas realizadas com absoluta perfeição. Se a carta estivesse depositada dentro do raio de suas investigações, esses rapazes, sem dúvida, a teriam encontrado.

Ri, simplesmente - mas ele parecia haver dito tudo aquilo com a máxima seriedade.

- As medidas, pois - prosseguiu -, eram boas em seu gênero, e foram bem executadas: seu defeito residia em serem inaplicáveis ao caso e ao homem em questão. Um certo conjunto de recursos altamente engenhosos é, para o delegado, uma espécie de leito de Procusto, ao qual procura adaptar à força todos os seus planos. Mas, no caso em apreço, cometeu uma série de erros, por ser demasiado profundo ou demasiado superficial, e muitos colegiais raciocinam melhor do que ele. Conheci um garotinho de oito anos cujo êxito como adivinhador, no jogo de "par ou ímpar", despertava a admiração de todos. Este jogo é simples e se joga com bolinhas de vidro. Um dos participantes fecha na mão algumas bolinhas e pergunta ao outro se o número é par ou ímpar. Se o companheiro acerta, ganha uma bolinha; se erra, perde uma. O menino a que me refiro ganhou todas as bolinhas de vidro da escola. Naturalmente, tinha um sistema de adivinhação que consistia na simples observação e no cálculo da astúcia de seus oponentes. Suponhamos, por exemplo, que seu adversário fosse um bobalhão que, fechando a mão, lhe perguntasse: "Par ou ímpar?" Nosso garoto responderia "ímpar", e perderia; mas, na segunda vez, ganharia, pois diria com os seus botões: "Este bobalhão tirou par na primeira vez, e sua astúcia é apenas suficiente para que apresente um número ímpar na segunda vez. Direi, pois, ímpar". Diz ímpar e ganha. Ora, com um simplório um pouco menos tolo que o primeiro, ele teria raciocinado assim: "Este sujeito viu que, na primeira vez, eu disse ímpar e, na segunda, proporá a si mesmo, levado por um impulso a variar de ímpar para par, como fez o primeiro simplório; mas, pensando melhor, acha que essa variação é demasiado simples, e, finalmente, resolve-se a favor do par, como antes. Eu, por conseguinte, direi par". E diz par, e ganha. Pois bem. Esse sistema de raciocínio de nosso colegial, que seus companheiros chamavam sorte, o que era, em última análise?

- Simplesmente - respondi - uma identificação do intelecto do nosso raciocinador com o do seu oponente.

- De fato - assentiu Dupin - e, quando perguntei ao menino de que modo efetuava essa perfeita identificação, na qual residia o teu êxito, recebi a seguinte resposta:
"Quando quero saber até que ponto alguém é inteligente, estúpido, bom ou mau, ou quais são os seus pensamentos no momento, modelo a expressão de meu rosto, tão exatamente quanto possível, de acordo com a expressão da referida pessoa e, depois, espero para ver quais os sentimentos ou pensamentos que surgem em meu cérebro ou em meu coração, para combinar ou corresponder à expressão". Essa resposta do pequeno colegial supera em muito toda a profundidade espúria atribuída a Rochefoucauld, La Bougive, Maquiavel e Campanella.

- E a identificação - acrescentei - do intelecto do raciocinador com o de seu oponente depende, se é que o compreendo bem, da exatidão com que o intelecto deste último é medido.

- Em sua avaliação prática, depende disso - confirmou Dupin. - E, se o delegado e toda a sua corte têm cometido tantos enganos, isso se deve, primeiro, a uma falha nessa identificação e, segundo, a uma apreciação inexata, ou melhor, a uma não apreciação da inteligência daqueles com quem se metem. Consideram engenhosas apenas as suas próprias ideias e, ao procurar alguma coisa que se ache escondida, não pensam senão nos meios que eles próprios teriam empregado para escondê-la. Estão certos apenas num ponto: naquele em que sua engenhosidade representa fielmente a da massa; mas, quando a astúcia do malfeitor é diferente da deles, o malfeitor, naturalmente, os engana. Isso sempre acontece quando a astúcia deste último está acima da deles e, muito frequentemente, quando está abaixo. Não variam seu sistema de investigação; na melhor das hipóteses, quando são instigados por algum caso insólito, ou por alguma recompensa extraordinária, ampliam ou exageram os seus modos de agir habituais, sem que se afastem, no entanto, de seus princípios. No caso de D..., por exemplo, que fizeram para mudar sua maneira de agir? Que são todas essas perfurações, essas buscas, essas sondagens, esses exames de microscópio, essa divisão da superfície do edifício em polegadas quadradas, devidamente anotadas? Que é tudo isso senão exagero na aplicação de um desses princípios de investigação baseados sobre uma ordem de idéias referentes à esperteza humana, a qual o delegado se habituou durante os longos anos de exercício de suas funções? Não vê você que ele considera como coisa assente o fato de que todos os homens que procuram esconder uma carta utilizam, se não precisamente um orifício feito a verruma na perna de uma cadeira, pelo menos alguma cavidade, algum canto escuro sugerido pela mesma ordem de idéias que levaria um homem a furar a perna de uma cadeira? E não vê também que tais esconderijos tão recherchés só são empregados em ocasiões ordinárias e por inteligências comuns? Porque, em todos os casos de objetos escondidos, essa maneira recherché de ocultar-se um objeto é, desde o primeiro momento, presumível e presumida - e, assim, sua descoberta não depende, de modo algum, da perspicácia, mas sim do simples cuidado, da paciência e da determinação dos que procuram. Mas, quando se trata de um caso importante - ou de um caso que, pela recompensa oferecida, seja assim encarado pela polícia - jamais essas qualidades deixaram de ser postas em ação. Você compreenderá, agora, o que eu queria dizer ao afirmar que, se a carta roubada tivesse sido escondida dentro do raio de investigação do nosso delegado - ou, em outras palavras, se o princípio inspirador estivesse compreendido nos princípios do delegado -, sua descoberta seria uma questão inteiramente fora de dúvida. Este funcionário, porém, se enganou por completo, e a fonte remota de seu fracasso reside na suposição de que o ministro é um idiota, pois adquiriu renome de poeta. Segundo o delegado, todos os poetas são idiotas - e, neste caso, ele é apenas culpado de uma non distributio medii, ao inferir que todos os poetas são idiotas.

- Mas ele é realmente poeta? - perguntei. - Sei que são dois irmãos, e que ambos adquiriram renome nas letras. O ministro, creio eu, escreveu eruditamente sobre o cálculo diferencial. É um matemático, e não um poeta.

- Você está enganado. Conheço-o bem. E ambas as coisas. Como poeta e matemático, raciocinaria bem; como mero matemático, não raciocinaria de modo algum, e ficaria, assim, à mercê do delegado.

- Você me surpreende - respondi - com essas opiniões, que têm sido desmentidas pela voz do mundo. Naturalmente, não quererá destruir, de um golpe, idéias amadurecidas durante tantos séculos. A razão matemática é há muito considerada como a razão par excellence.

- "Il y a à parier" - replicou Dupin, citando Chamfort - "que toute idée publique, toute convention reçue, est une sottise, car elle a convenu au plus grande nombre." Os matemáticos, concordo, fizeram tudo o que lhes foi possível para propagar o erro popular a que você alude, e que, por ter sido promulgado como verdade, não deixa de ser erro. Como uma arte digna de melhor causa, ensinaram-nos a aplicar o termo "análise" às operações algébricas. Os franceses são os culpados originários desse engano particular, mas, se um termo possui alguma importância - se as palavras derivam seu valor de sua aplicabilidade -, então análise poderá significar álgebra, do mesmo modo que, em latim, ambitus significa ambição, religio, religião, ou homines honesti um grupo de homens honrados.

- Vejo que você vai entrar em choque com alguns algebristas de Paris - disse-lhe eu. - Mas prossiga.

- Impugno a validez e, por conseguinte, o valor de uma razão cultivada por meio de qualquer forma especial que não seja a lógica abstrata. Impugno, de modo particular, o raciocínio produzido pelo estudo das matemáticas. As matemáticas são a ciência da forma e da quantidade; o raciocínio matemático não é mais do que a simples lógica aplicada à observação da forma e da quantidade. O grande erro consiste em supor-se que até mesmo as verdades daquilo que se chama álgebra pura são verdades abstratas ou gerais. E esse erro é tão grande, que fico perplexo diante da unanimidade com que foi recebido. Os axiomas matemáticos não são axiomas de uma verdade geral. O que é verdade com respeito à relação - de forma ou quantidade - é, com freqüência grandemente falso quanto ao que respeita à moral, por exemplo. Nesta última ciência, não é, com freqüência, verdade que a soma das partes seja igual ao todo. Na química, também falha o axioma. Na apreciação da força motriz, também falha, visto que dois motores, cada qual de determinada potência, não possuem necessariamente, quando associados, uma potência igual à soma de suas duas potências tornadas separadamente. Há numerosas outras verdades matemáticas que são somente verdades dentro dos limites da relação. Mas o matemático argumenta, por hábito, partindo de suas verdades finitas, como se estas fossem de uma aplicabilidade absoluta e geral - como o mundo, na verdade, imagina que sejam. Bryant, em sua eruditíssima Mitologia, refere-se a uma fonte análoga de erro, ao dizer que, "embora ninguém acredite nas fábulas do paganismo, nós, com frequência, esquecemos isso, até o ponto de fazer inferência partindo delas, como se fossem realidades vivas". Entre os algebristas, porém, que são, também eles, pagãos as "fábulas pagãs" merecem crédito, e tais inferências são feitas não tanto devido a lapsos de memória, mas devido a um incompreensível transtorno em seus cérebros. Em suma, não encontrei jamais um matemático puro com quem pudesse ter confiança, fora de suas raízes e de suas equações; não conheci um único sequer que não tivesse como artigo de fé que x2 + px é absoluta e incondicionalmente igual a q. Se quiser fazer uma experiência, diga a um desses senhores que você acredita que possa haver casos em que x2+ px não seja absolutamente igual a q, e, logo depois de ter-lhe feito compreender o que você quer dizer com isso, fuja de suas vistas o mais rapidamente possível, pois ele, sem dúvida, procurará dar-lhe uma surra.

- O que quero dizer - continuou Dupin, enquanto eu não fazia senão rir-me destas últimas observações - é que, se o ministro não fosse mais do que um matemático, o delegado de polícia não teria tido necessidade de dar-me este cheque. Eu o conhecia, porém, como matemático e poeta, e adaptei a essa sua capacidade as medidas por mim tomadas, levando em conta as circunstâncias em que ele se achava colocado. Conhecia-o, também, não só como homem da corte, mas, ainda, como intrigante ousado. Tal homem, pensei, não poderia ignorar a maneira habitual de agir da polícia. Devia ter previsto - e os acontecimentos demonstraram que, de fato, previra - os assédios disfarçados a que estaria sujeito. Devia também ter previsto, refleti, as investigações secretas efetuadas em seu apartamento. Suas freqüentes ausências de casa, à noite, consideradas pelo delegado de polícia como coisa que viria contribuir, sem dúvida, para o êxito de sua empresa, eu as encarei apenas como astúcia, para que a polícia tivesse oportunidade de realizar urna busca completa em seu apartamento e convencer-se, o mais cedo possível, como de fato aconteceu, de que a carta não estava lá. Pareceu-me, também, que toda essa série de ideias referentes aos princípios invariáveis da ação policial nos casos de objetos escondidos, e que tive certa dificuldade, há pouco, para explicar-lhe, pareceu-me que toda essa série de ideias deveria, necessariamente, ter passado pelo espírito do ministro. Isso o levaria, imperativamente a desdenhar todos os esconderijos habituais. Não poderia ser tão ingênuo que deixasse de ver que os lugares mais intrincados e remotos de seu hotel seriam tão visíveis como um armário para os olhos, as pesquisas, as verrumas e os microscópios do delegado. Percebi, em suma, que ele seria levado, instintivamente, a agir com simplicidade, se não fosse conduzido a isso por simples deliberação. Você talvez se recorde com que gargalhadas desesperadas o delegado acolheu, em nossa primeira entrevista, a minha sugestão de que era bem possível que esse mistério o perturbasse tanto devido ao fato de ser demasiado evidente.

- Sim, lembro-me bem de como ele se divertiu. Pensei mesmo que ele iria ter convulsões de tanto rir.

- O mundo material - prosseguiu Dupin - contém muitas analogias estritas com o imaterial e, desse modo, um certo matiz de verdade foi dado ao dogma retórico, a fim de que a metáfora, ou símile, pudesse dar vigor a um argumento, bem como embelezar uma descrição. O princípio da vis inertiae, por exemplo, parece ser idêntico tanto na física como na metafísica. Não é menos certo quanto ao que se refere à primeira, que um corpo volumoso se põe em movimento com mais dificuldade do que um pequeno, e que o seu momentum subsequente está em proporção com essa dificuldade, e que, quanto à segunda, os intelectos de maior capacidade, conquanto mais potentes, mais constantes e mais acidentados em seus movimentos do que os de grau inferior, são, não obstante, mais lentos, mais embaraçados e cheios de hesitação ao iniciar seus passos. Mais ainda: você já notou quais são os anúncios, nas portas das lojas, que mais atraem a atenção?

- Jamais pensei no assunto - respondi.

- Há um jogo de enigmas - replicou ele - que se faz sobre um mapa. Um dos jogadores pede ao outro que encontre determinada palavra - um nome de cidade, rio, Estado ou império -, qualquer palavra, em suma, compreendida na extensão variegada e intrincada do mapa. Um novato no jogo geralmente procura embaraçar seus adversários indicando nomes impressos com as letras menores; mas os acostumados ao jogo escolhem palavras que se estendem, em caracteres grandes, de um lado a outro do mapa. Estes últimos, como acontece com os cartazes excessivamente grandes existentes nas ruas, escapam à observação justamente por serem demasiado evidentes, e aqui o esquecimento material é precisamente análogo à desatenção moral que faz com que o intelecto deixe passar despercebidas considerações demasiado palpáveis, demasiado patentes. Mas esse é um ponto, ao que parece, que fica um tanto acima ou um pouco abaixo da compreensão do delegado. Ele jantais achou provável, ou possível, que o ministro houvesse depositado a carta bem debaixo do nariz de toda a gente a fim de evitar que alguma daquela gente a descobrisse.

- Mas, quanto mais refletia eu sobre a temerária, arrojada e brilhante ideia de D... pensando no fato de que ele devia ter sempre esse documento à mão, se é que pretendia empregá-lo com êxito e, ainda, na evidência decisiva conseguida pelo delegado de que a carta não se achava escondida dentro dos limites de uma investigação ordinária, tanto mais me convencia de que, para ocultá-la, o ministro lançara mão do compreensível e sagaz expediente de não tentar escondê-la de modo algum.

"Convencido disso, munime de óculos verdes e, uma bela manhã, como se o fizesse por simples acaso, procurei o ministro em seu apartamento. Encontrei D... em casa, bocejando, vadiando e perdendo tempo como sempre, e pretendendo estar tomado do mais profundo ennui. Ele é, talvez, o homem mais enérgico que existe, mas isso unicamente quando ninguém o vê.

"Para estar de acordo com o seu estado de espírito, queixei-me de minha vista fraca e lamentei a necessidade de usar óculos, através dos quais examinava, com a máxima atenção e minuciosidade, o apartamento, enquanto fingia estar atento unicamente à conversa.

"Prestei atenção especial a uma ampla mesa, junto à qual ele estava sentado e onde se viam, em confusão, várias cartas e outros papéis bem como um ou dois instrumentos musicais e alguns livros. Depois de longo e meticuloso exame, vi que ali nada existia que despertasse, particularmente, qualquer suspeita.

"Por fim, meus olhos, ao percorrer o aposento, depararam com um vistoso porta-cartas de papelão filigranado, dependurado de uma desbotada fita azul, presa bem no meio do consolo da lareira. Nesse porta-cartas, que tinha três ou quatro divisões, havia cinco ou seis cartões de visita e uma carta solitária. Esta última estava muito suja e amarrotada e quase rasgada ao meio, como se alguém, num primeiro impulso, houvesse pensado em inutilizá-la como coisa sem importância, mas, depois, mudado de opinião. Tinha um grande selo negro, com a inicial "D" bastante visível, e era endereçada, numa letra diminuta e feminina, ao próprio ministro. Estava enfiada, de maneira descuidada e, ao que parecia, até mesmo desdenhosa, numa das divisões superiores do porta-cartas.

"Mal lancei os olhos sobre a carta, concluí que era aquela que eu procurava. Era, na verdade, sob todos os aspectos, radicalmente diferente da que o delegado nos descrevera de maneira tão minuciosa. Na que ali estava o selo era negro e a inicial um "D" na carta roubada, o selo era vermelho e tinha as armas ducais da família S...

"Aqui, o endereço do ministro fora traçado com letra feminina muito pequena; na outra, o sobrescrito, dirigido a certa personalidade real, era acentuadamente ousado e incisivo. Somente no tamanho havia uma certa correspondência. Mas, por outro lado, a grande diferença entre ambas as cartas, a sujeira, o papel manchado e rasgado, tão em desacordo com os verdadeiros hábitos de D..., e que revelavam o propósito de dar a quem a visse a idéia de que se tratava de um documento sem valor, tudo isso, aliado á colocação bem visível do documento, que o punha diante dos olhos de qualquer visitante, ajustando-se perfeitamente às minhas conclusões anteriores, tudo isso, repito, corroborava decididamente as suspeitas de alguém que, como eu, para lá me dirigira com a intenção de suspeitar.

"Prolonguei minha visita tanto quanto possível e, enquanto mantinha animada conversa com o ministro, sobre um tema que sabia não deixara jamais de interessá-lo e entusiasmá-lo, conservei a atenção presa à carta. Durante esse exame, guardei na memória o aspecto exterior e a disposição dos papéis no porta-cartas, chegando, por fim, a uma descoberta que dissipou por completo qualquer dúvida que eu ainda pudesse ter. Ao observar atentamente as bordas do papel, verifiquei que as mesmas estavam mais estragadas do que parecia necessário. Apresentavam o aspecto irregular que se nota quando um papel duro, depois de haver sido dobrado e prensado numa dobradeira, é dobrado novamente em sentido contrário, embora isso seja feito sobre as mesmas dobras que constituíam o seu formato anterior. Bastou-me essa descoberta. Era evidente para mim que a carta fora dobrada ao contrário, como uma luva que se vira no avesso, sobrescrita de novo e novamente lacrada. Despedi-me do ministro e sai incontinente, deixando uma tabaqueira de ouro sobre a mesa.

"Na manhã seguinte, voltei à procura de minha tabaqueira, ocasião em que reiniciamos, com bastante vivacidade, a conversa do dia anterior. Enquanto palestrávamos, ouvimos forte detonação de arma de fogo bem defronte do Hotel, seguida de uma série de gritos horríveis e do vozerio de uma multidão. D... precipitou-se em direção da janela, abriu-a e olhou para baixo. Entrementes, aproximei-me do porta-cartas, apanhei o documento, meti-o no bolso e o substituí por um fac-símile (quanto ao que se referia ao aspecto exterior) preparado cuidadosamente em minha casa, imitando facilmente a inicial "D" por meio de um elo feito de miolo de pão.

"O alvoroço que se verificara na rua fora causado pelo procedimento insensato de um homem armado de mosquete. Disparara-o entre uma mosquete. Disparara-o entre uma multidão de mulheres e crianças. Mas, como a arma não estava carregada senão com pólvora seca, o indivíduo foi tomado por bêbado ou lunático, e permitiram-lhe que seguisse seu caminho. Depois que o homem se foi, D... retirou-se da janela da qual eu também me aproximara logo após conseguir a carta. Decorrido um instante, despedi-me dele. O pretenso lunático era um homem que estava a meu serviço."

- Mas o que pretendia você - perguntei - ao substituir a carta por um fac-símile? Não teria sido melhor, logo na primeira visita, tê-la apanhado de uma vez e ido embora?

- D... - respondeu Dupin - é homem decidido de grande coragem. Além disso, existem, em seu hotel, criados fiéis aos seus interesses. Tivesse eu feito o que você sugere, talvez não conseguisse sair vivo de sua presença "ministerial".

A boa gente de Paris não ouviria mais notícias minhas. Mas, à parte estas considerações, eu tinha um fim em vista. Você sabe quais são minhas simpatias políticas. Nesse assunto, ajo como partidário da senhora em apreço. Durante dezoito meses, o ministro a teve à sua mercê. Agora, é ela quem o tem a ele, já que ele ignora que a carta já não está em seu poder e continuará a agir como se ainda a possuísse. Desse modo, encaminha-se, inevitavelmente, sem o saber, rumo à sua própria ruína política. Sua queda será tão precipitada quanto desastrada. Está bem que se fale do facilis descensus Averni, mas em toda a espécie de ascenção, como dizia Catalani em seus cantos, é muito mais fácil subir que descer. No presente caso, não tenho simpatia alguma - e nem sequer piedade - por aquele que desce. És esse monstrum horrendum - o homem genial sem princípios. Confesso, porém, que gostaria de conhecer o caráter exato de seus pensamentos quando, ao ser desafiado por aquela a quem o delegado se refere como "uma certa pessoa", resolva abrir o papel que deixei em seu porta-cartas.

- Como! Você colocou lá alguma coisa particular?

- Ora, não seria inteiramente correto deixar o interior em branco... Seria uma ofensa. Certa vez, em Viena, D... me pregou uma peça, e eu lhe disse, bem-humorado, que não me esqueceria daquilo. De modo que, como sabia que ele iria sentir certa curiosidade sobre a identidade da pessoa que o sobrepujara em astúcia, achei que seria uma pena deixar de dar-lhe um indício. Ele conhece bem minha letra e, assim, apenas copiei, no meio da tolha em branco, o seguinte:

... un dessein si funeste, s'il n'est digne d'Artrée, est digne de Thyest. (... um plano tão funesto, se não é digno de Atreu é digno de Tiestes).

São palavras que podem ser encontradas em Artrée, de Crébillon.