sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O Fantasma

Sujeito, objeto e coisa são conceitos distintos, certo?! Essa noção se intensificou no pensamento filosófico, sobretudo a partir de Kant. A coisa não é uma coisa para ninguém. O objeto por outro lado, apela para um sujeito. O termo objeto quer dizer, aquilo que é colocado diante, e consequentemente, aquilo que afeta os sentidos. Essa ideia exige um correlato, aquele que é afetado pelo objeto, deixa o sujeito numa posição de aquele que é subordinado. Lacan vai subverter esse termo, uma vez que, para ele o sujeito da psicanálise é um sujeito barrado, subordinado ao significante, representado na cadeia significante sem nela figurar. Temos ouvido, com uma certa frequência até, que o sujeito do inconsciente é incompleto, marcado por uma falta e que isso produz angústia. Num sentido clássico, o sujeito é um sujeito do conhecimento e o objeto, aquele a ser conhecido.

Lacan vai propor uma fórmula para dar conta dessa relação particular do sujeito com o objeto à qual chamará de fórmula do fantasma:


Para Lacan, o fantasma é justamente isso que "enquadra" a relação do sujeito com a realidade, com seus objetos. Em Freud, temos um fantasma como um cenário imaginário que dramatiza (deformado pelas defesas) a realização de um desejo inconsciente. Nessa concepção o fantasma é simultaneamente a expressão de um desejo recalcado e o protótipo dos desejos atuais conscientes ou inconscientes do sujeito. Complicando um pouco mais, em Lacan, o fantasma tem um pé na linguagem, digamos assim, ao mesmo tempo em que é Imaginário, é também Simbólico que recobrem o Real. A fórmula mostra como o fantasma pode velar a divisão do sujeito e dar seu "quadro" à realidade. A partir do momento em que está na linguagem o sujeito só pode recorrer a linguagem para tentar reencontrar esse objeto, perdido justamente por causa dela.

A fórmula proposta por Lacan pode ser lida da seguinte forma: sujeito barrado punção de a, ou mais posteriormente, sujeito barrado desejo de a. A noção de objeto a (leia objeto pequeno a) é o que permite articular o fantasma. Nas Confissões, de Santo Agostinho, encontramos uma referência usada como encarnação do objeto a para aquele que olha uma imagem de completude, no trecho o santo evoca o ciúme sentido frente à visão de uma criança sugando o seio da mãe. Lacan elege o sinal de punção estrategicamente, em francês é poinçon, significando um ato, processo ou efeito de furar com um instrumento dotado de ponta e também, um instrumento pontiagudo usado para fazer furos ou gravações. Este símbolo se presta a várias operações: o ˆ é o sinal de conjunção; a parte inferior, ou seja, o sinal ˇ refere-se à disjunção; a visão lateral esquerda, < indica menor que; já a visão lateral direita, o sinal >, maior que.

Esses objetos aparecem ligados à relação do sujeito com a questão fálica, o objeto é o que suporta o sujeito no momento em que ele precisa fazer frente à questão de sua existência. Se o objeto a é a primeira perda do sujeito, aquilo que em algum momento instaurou a incompletude, é justamente essa a marca na linguagem. Ao recorrer às palavras percebe-se que estas falham, não podem dizer tudo. Nesse momento de pânico, é ao objeto do desejo que o sujeito se agarra. Lacan usa o exemplo da peça de Molière, O Avarento e sua relação com seu cofre. Na peça o desejo manifesta-se na retenção de um objeto que não dá outro gozo senão o de ser suporte de desejo, na medida em que o retém, o guarda. O cofre garante a permanência do desejo e cumpre uma função causal, uma outra leitura do objeto a é objeto causa do desejo. A questão é que estes objetos, constantemente reencontrados em substitutos não são objetos plenamente satisfatórios, aquele da primeira satisfação. Assim, podemos inferir que, esse objeto encontrado não é o objeto desejado. O sujeito é remetido de objeto em objeto, e o objeto a  é o que causa o desejo, muito mais do que aquilo que ele visa. Percebem de onde vem a angústia ao nos depararmos com a incompletude daquilo que tomamos como causa do nosso desejo? Não à toa, a frase usada pela Santaella em aula foi de que a análise é a travessia do fantasma.

VANIER, Alain. Lacan / Alain Vanier; trad. Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. (Figuras do saber; 13).
CALLIGARIS, Contardo. Hipótese sobre o fantasma na cura psicanalítica. Porto Alegre:  Artes Médicas, 1986.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Do lado de dentro ou do lado de fora?

Ontem assisti uma aula que não sei muito bem dizer sobre o que. Bom, teve um filme chamado A Quarta Guerra Mundial - The Fourth World War (2003), que de uma forma bem resumida trata sobre a luta mundial contra a opressão do neoliberalismo. Nesta guerra onde os protestos são contra as diversas formas de opressão, imposição, desrespeito aos direitos humanos, o que se busca é a não-alienação do sujeito.

Por alienação podemos considerar o conceito que vai de Hegel à Marx e que se liga ao trabalho. Hegel dizia que o trabalho é a essência do homem, é através do trabalho que o sujeito pode realizar plenamente suas habilidades em produções materiais. Marx achou interessante o fato de Hegel considerar a transformação do pensamento puro em pensamento sensível, visando uma realização material na forma de trabalho, fazendo do homem um ser alienado (aqui num sentido positivo), separado da essência pura abre-se caminho para a separação entre ideal e real. Este pensamento se encaixou muito bem nas relações sociais do capitalismo (em Marx num sentido negativo), em que os trabalhadores eram explorados nas fábricas e deixavam seus patrões cada vez mais ricos, ao passo que os tais trabalhadores ficavam cada vez mais pobres. Entretanto, não vou me atrever a continuar falando de Marx ou Hegel, só quis ilustrar a alienação. Quando vemos um protesto, uma greve, uma manifestação, temos uma tentativa de se sair da condição de alienado?

Bom, voltando à aula. Vou tentar descrever a situação, claro que segundo a minha opinião. Perdi a introdução antes do filme, cheguei quando este se iniciava. Não muito além de uma hora de vídeo, passamos do filme à uma exposição de alguns conceitos como design social, Primavera Árabe, e três pontinhos. O que me chamou a atenção foi a) o fato da aula continuar após o filme sem um intervalo, fato que 99,9% das vezes ocorre em outras aulas, b) após algumas questões levantadas em sala notei um certo "autoritarismo do saber" - notem que usei as aspas justamente para ressaltar que esta é a minha posição, por parte do que chamaremos aqui de professor e, c) tudo isso se deu após um filme que denunciava justamente este comportamento autoritário. Fiz alguns comentários após a aula com alguns amigos sobre esta postura, perguntei se no início havia sido dito que não haveria um intervalo, responderam que não. Sem criar polêmicas com o intervalo até porque eu não vou tomar café, comer algo ou ir ao banheiro, mas porque gosto do bate-papo deste momento.

GOFFMAN E AS INSTITUIÇÕES TOTAIS

Contudo, chego agora - e só agora! onde queria chegar. Me lembrei de um autor que li na época da faculdade chamado Erving Goffman, professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, que escreveu Manicômios, Prisões e Conventos (2001). Neste livro Goffman vai formular os conceitos de “instituição total”, de “carreira moral” e de “vida íntima da instituição”. Existem alguns mecanismos de estruturação de uma instituição que acabam determinando a sua condição de instituição total e consequentemente, promovem interferências na formação do eu do indivíduo que participa desta instituição. O termo "total" da instituição se dá por sua tendência a um "fechamento", ou seja, as pessoas ao inserirem-se numa instituição social passam a agir num mesmo lugar, com um mesmo grupo de pessoas sob tratamentos, obrigações e regras para a realização de atividades impostas. Quando esta instituição social se organiza para atender seus internos em situações semelhantes, separando-os da sociedade de um modo mais amplo por um período de tempo e impondo-lhes uma rotina fechada, temos aqui as condições para o que Goffman chamou de instituição total.

Um conceito importante nesta obra é a "mortificação do eu", quando um interno chega a um hospital ele sofre uma supressão da concepção de si mesmo e da cultura que traz consigo, há um despojamento de seu papel na vida civil que deve agora ser obedecido através das regras de conduta da instituição. Se um padre ou um músico cairem doentes no leito de um hospital, sua vida social não interessa à instituição que agora os considera "pacientes", estas ações fazem com que se perca o conjunto de identidade levando-os a uma reorganização pessoal. Estes mecanismos geram um ambiente que causa no sujeito a sensação de fracasso, um sentimento de que o tempo de internação é perdido, mas que necessita ser cumprido e esquecido, além de uma angústia diante da ideia de retorno à sociedade. O processo de internação é caracterizado pelo autor através da "carreira moral", que passa por fases de abandono, desejo de anonimato, passando por uma fase de aceitação onde o interno considera esta condição como parte essencial para sua cura, criando uma sensação de impotência. Para isto, as instituições totais criam ajustamentos através de regras de conduta e padrões que norteiam o bem estar, valores, incentivos e sanções para seu internado, o que Goffman nomeou como a "vida íntima da instituição".

UM PANORAMA ATUAL

Esta vida reclusa numa instituição total não é privilégio apenas das prisões, conventos e manicômios, vemos várias outras instituições assumirem este mesmo caráter de fechamento e de mortificação do sujeito. Nesse novo apanhado situam as escolas, os hosptais, casas de repouso, abrigos, a religião, muitas ONGs e muitas outras instituições, que sempre levam o sujeito a uma despersonalização. Um fato curioso é que estas instituições vem a produzir justamente aquilo que deveriam combater, assim os hospitais que deveriam lutar contra as doenças e promover a saúde, têm produzido outras tantas questões que também são enquadradas sob a forma de adoecimento. Só para citar como exemplo: 
  • Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP) a cada 100 alunos que ingressam na escola na 1ª série, somente 5 concluem o ensino fundamental. Em 2007, 4,8% dos alunos matriculados no ensino fundamental e 13,2% matriculados no ensino médio abandonaram a escola. Além das condições socioeconômicas, culturais ou geográficas um dos motivos diz respeito ao encaminhamento pedagógico e a baixa qualidade do ensino nas escolas (http://www.infoescola.com/educacao/evasao-escolar/);
  • O estudante M. L. S. de 18 anos, disse que foi agredido com uma pistola por um segurança da Igreja Universal do Reino de Deus de Taubaté (SP) enquanto usava um banheiro da igreja. Ao sair do local, ainda machucado, pediu socorro em uma base móvel da Polícia Militar mas os policias disseram que era para ele resolver o caso na igreja (http://www.fontegospel.com.br/?p=55043);  
  •  O Vaticano reforçou que os casos de padres pedófilos devem ser denunciados "sempre" à autoridade civil e que, ...
Acho que basta! Claro que existe também ótimos resultados em todas estas instituições, uma colega de trabalho conta que foi premiada este ano pela rede de ensino como professora revelação. Esta mesma educadora é responsável por uma oficina de videogames em uma ONG, entre as discussões com as crianças fica o destaque para o tema violência. Por outro lado, nosso referido professor pode dizer que as fontes das informações citadas acima manipulam os dados a seu favor. Não preciso destes dados para saber que uma parte considerável de jovens está descontente com as escolas, apresentam dificuldades de interpretação de textos, que no hospital meu tio se chamava Paciente do Leito 14, e que a igreja acredita nos direitos humanos, desde que ele não seja gay... Também posso dispensar as referências para suspeitar de uma aula que se atreve a denunciar o autoritarismo e a alienação, mas deixa de ouvir o que os "depositários" tem a dizer. 

ESTAMOS CONFORMADOS?

Ainda não havia aplicado (ou pensado) no conceito exposto acima, ou seja, de que muitas instituições acabam produzindo aquilo que deveriam combater, em pessoas. Mas parece que minha última aula não deixa dúvidas. O pior e, provavelmente a causa de tamanho texto é admitir que fiquei em silêncio, que permaneci na mais sublime posição de alienado... Se o conceito pode ser aplicado ao professor, pode também ser aplicado à mim.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O sentido faz falta?

Por Contardo Calligaris em 06/10/2011
 
A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto

É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido -muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
 
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
 

Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
 

Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
 

Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
 

Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
 

Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
 

Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
 

A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
 

Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
 

Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
 

O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
 

Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".

A sensação do século

Cena do filme "Gamer": Shaviro mostra como a tecnologia que produz as obras se reflete nelas; por exemplo, como o cinema de ação está ficando parecido com jogos eletrônicos

Por Diego Viana | De São Paulo


Uma pergunta estranha, mas bastante atual, é o ponto de partida para o livro "Post-Cinematic Affect" (Zero Books, 200 págs., R$ 13,57), do crítico cultural americano Steven Shaviro, da Wayne State University: "Qual é a sensação de viver no começo do século XXI?" Já nos anos 1950, o teórico da mídia canadense Marshall McLuhan demonstrou que mudanças nos meios de produzir e se comunicar alteram também "as proporções dos sentidos". McLuhan se referia ao advento da televisão, mas hoje os novos meios são muitos. Não só as tecnologias de computação em rede influem na vida contemporânea, mas também os celulares, o sistema financeiro globalizado, o comércio por grandes cargueiros guiados por GPS e a possibilidade de gerir informaticamente os estoques. As consequências, para o autor, são "mudanças massivas na sensação de estar vivo". São "mudanças de humor, sensibilidade, modos de atenção e memória", imperceptíveis no dia a dia, mas detectáveis por outros meios.
Shaviro parte da premissa de que é difícil conhecer as particularidades do tempo em que se vive. Para entendê-las, é preciso examinar a produção cultural. "São mudanças tão novas e tão pouco familiares que mal temos vocabulário para descrevê-las." O exame permite enxergar como o público se relaciona com suas estrelas, como a tecnologia que produz as obras se reflete nessas obras e como uma mídia influencia as demais - por exemplo, como o cinema de ação vai se tornando parecido com jogos eletrônicos. Shaviro cita o filme "Videodrome", de David Cronenberg (1983), em que o personagem Brian O'Blivion [um trocadilho com "oblivion", o completo esquecimento] afirma que "a batalha pelas mentes será lutada na arena do vídeo".
Estendendo a afirmação aos meios do século XXI, Shaviro diz que a mídia é o campo de batalha porque é, ao mesmo tempo, parte do aparato de produção, uma ferramenta para gerar e modular a subjetividade e um instrumento de comunicação que atravessa as conexões e desconexões entre indivíduos e comunidades. "Há lutas sobre o conteúdo e as formas; questões sobre quem as possui, quem pode falar por elas, a quem se dirigem, como estão distribuídas, o que implicam."

A disciplina da escola, o ritmo da fábrica e a rigidez familiar deram lugar a exigências de adaptação rápida e ocupações fluidas

É bem sabido que o cinema começou a perder sua posição central na cultura com o advento da televisão, nos anos 50, e a própria televisão passou a ceder espaço no fim dos anos 90 para mídias digitais. Mesmo assim, o livro examina quatro obras, todas feitas para o cinema ou a televisão. "Gamer", de Mark Neveldine e Brian Taylor (2009), "Traição em Hong Kong", de Olivier Assayas (2007), e "Southland Tales, o Fim do Mundo", de Richard Kelly (2006), são filmes para a tela grande. "Corporate Cannibal" é o videoclipe de Nick Hooker para a canção de Grace Jones (2008).
Para Shaviro, mais do que examinar diretamente as novas mídias, é preciso entender como elas modificam as que já existiam. Ele se apropria de um termo do sociólogo Raymond Williams, "estruturas de sensação", para se perguntar como os filmes do século XXI dão voz a "uma sensibilidade ambiente e flutuante". Entender essa sensibilidade é conhecer a sensação de viver no início do século XXI. O autor cita a trilogia "Atividade Paranormal" (2007, 2010 e 2011), em que, segundo ele, a sensação de terror advém da ruptura das relações de tempo e espaço. Quando forças demoníacas perturbam o sono dos protagonistas, submetendo-os a novos "ritmos temporais de terror e antecipação", os humanos tentam afastar as forças do mal usando tecnologias como computadores portáteis e câmeras digitais para restabelecer a ordem. "São as mesmas tecnologias que produziram os filmes", observa Shaviro. A tecnologia, assim, é o principal vínculo entre as famílias humanas e o "outro lado". O enredo sugere um entendimento de como as tecnologias digitais carregam consigo as relações sociais e de produção implicadas em sua invenção e seu uso.
O capítulo sobre "Traição em Hong-Kong" introduz uma reflexão sobre o estrelato. Em "O Rosto de Garbo", o semiólogo francês Roland Barthes marcou a diferença entre o estrelato da sueca Greta Garbo (cujo auge foi nos anos 30) e o da inglesa Audrey Hepburn (auge nos anos 60). Shaviro compara as estrelas de outrora a Asia Argento, de "Traição em Hong Kong", uma "estrela pós-cinemática". Barthes descreve o rosto de Greta como uma figura de beleza essencial, "descida de um paraíso onde as coisas são formadas na mais clara das luzes". Já o rosto de Audrey não é uma essência, mas uma figura individualizada, um "estrelato modernista". Asia, para Shaviro, é um novo tipo de estrela, "imanente e corporificada". Para Barthes, "o rosto de Garbo é uma Ideia, o de Hepburn é um evento". Shaviro argumenta que o rosto de Asia Argento não é nenhum dos dois, mas uma superfície em branco, "sobre a qual todos os afetos podem atuar ao mesmo tempo, mesmo os contraditórios".
A ideia da superfície em branco ajuda a entender por que o início de século é caracterizado por noções como fragmentação, imediatismo, virtualidade, atenção estilhaçada e "a sensação alucinante de que as coisas são mais intensas no curto prazo e têm menos seguimento no longo", diz o autor. Escrevendo sobre o videoclipe de "Corporate Cannibal", Shaviro observa que o diretor trabalha com os extremos do preto e branco, criando um fundo simples sobre o qual produz uma série ilimitada de modulações da imagem de Grace Jones. A modulação é tecnológica, sublinha o autor. Hooker usa programas de computador para reproduzir o rosto e o corpo de Grace Jones em uma infinidade de variações, a partir de uma matéria-prima também técnica (porque obtida pela eliminação de todas as tonalidades cromáticas), mas simplificada até o máximo possível. A modulação, diz Shaviro, precisa dessa base fixa para se manter sob controle e, com isso, "aconteça o que acontecer, as variações podem ser capturadas e neutralizadas".
Shaviro aproxima a noção de modulação e o imperativo da flexibilidade, com seus corolários "adaptabilidade" e "versatilidade", nos mercados de consumo e trabalho do início de século XXI. Ao contrário do que ocorria no século XX, dominado pela produção industrial de caráter fordista, os moldes fixos são rejeitados pela subjetividade contemporânea. A disciplina da escola, o ritmo do chão de fábrica, a rigidez familiar, tudo isso ficou para trás e deu lugar a exigências de adaptação rápida, produtos individualizados e ocupações fluidas. O videoclipe de Grace Jones explora essa variabilidade nas últimas consequências.
Para resumir o vínculo estreito que descobre entre os processos de produção dos bens culturais e a própria sensação de pertencer à cultura contemporânea, o autor evoca uma frase do poeta francês Stéphane Mallarmé: "Tudo se resume à estética e à economia política". As obras estéticas, segundo Shaviro, ajudam a revelar com um pouco mais de clareza o mundo onde vivemos e as dificuldades que enfrentamos. Mais do que isso, permitem imaginar alternativas. Por isso, explica o autor, a ficção científica é um gênero particularmente interessante, porque se preocupa não em prever o futuro, mas em extrapolar futuros a partir do presente, "para trazer à luz tanto seus potenciais quanto seus perigos".

Viagem do ponto na frase

Um amigo compartilhou sua análise sobre uma foto (neste link) e, como pediu minha opinião, não pude evitar prestar atenção em um erro de digitação acidental, digamos assim, para evitar possíveis constrangimentos, ou maiores manifestações de cunho persecutório. Seu erro foi notado nesta frase:

"A vida surge para acabar, ela sabe disso .E com as mãos impostas quase em oração, segura uma caneca para a qual mira fixamente o lado de dentro."

Como sabemos quando uma frase termina? Não é uma questão existencial, ou talvez seja (atualmente, ou tudo é, ou nada é). Podemos começar uma frase usando um olá, era uma vez, cordial Sr., invariavelmente deve começar com uma letra maiúscula. Assim teríamos um Olá, Era uma vez, Cordial Sr.. A primeira letra da frase se marca pela diferença dentre as demais, neste caso seu tamanho difere do restante da frase. Em alguns livros, ou revistas, ou... enfim, sua marca diferencial é notavelmente gritante. Pensem no "E" de Era uma vez, quando este vem num estilo de letra mais elaborado, ocupando às vezes, tantas linhas do parágrafo. Desta forma, quando nos deparamos com um caso desses sabemos que ali tem início uma ideia, um raciocínio, uma divagação, uma análise, uma verdade ou uma mentira (depende do seu posicionamento filosófico), mas e quando isto termina?

Com certeza o fim não é marcado pela mesma característica do início, fato que constatamos em nossas leituras, pois não vemos uma letra diferenciada no final das frases. Provavelmente, um ponto de vista da gramática, costume, regra, ou ainda, uma analogia com um certa filosofia ocidental que evita a todo custo admitir sua finitude. Não tenho capacidade para afirmar, portanto, só posso questionar: em outras culturas a última letra da frase é maiúscula? Caso a resposta seja não, a questão sobre o fim é universal.

Não poderíamos usar a mesma regra do início para marcar o fim, são diferentes na vida, são diferentes na gramática. Bom, e quanto à questão inicial: como sabemos quando uma frase termina? Vamos olhar de novo a frase que meu amigo usou para iniciar seu texto: "A vida surge para acabar, ela sabe disso ." Notaram qual foi o erro? Não?! Leia de novo. Pronto! ou deveria dizer: Ponto! O ponto da frase que deveria marcar seu fim está no início da frase seguinte. Vou ilustrar a importância do ponto no final da frase com um exemplo: "Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude." (Borges, 2001, p.92). Para determinar o término da frase usamos o ponto. Se mudarmos este ponto a frase muda também, inclusive seu sentido, "Como todos os homens da Biblioteca, viajei."; "Como todos os homens da Biblioteca."; "Como todos os homens."; "Como todos."; "Como.".
Foi um erro de digitação, muitos dirão numa tentativa angustiante de justificar o erro. Mais uma vez, chegamos a outra questão atual, parece que as justificativas sobre nossos erros, que quase sempre geram angústias, são inesgotáveis, e ao mesmo tempo insuficientes. Por serem insuficientes, não justificam o erro, gerando novas angústias (tautologia, concordo!). Voltemos à frase, então. Talvez tenha sido ironia esta situação se dar justamente numa frase que fala sobre a morte. Na tentativa de afirmar a existência da morte marcando a inexistência do sujeito, a frase falha, pois não termina onde deveria, ou seja, no ponto. Este fica para iniciar a frase seguinte, conceito embutido pelas religiões, sob o discurso de que a morte é a entrada para uma outra vida. Provavelmente, o erro não tivesse se dado se a frase terminasse em acabar, assim os iis teriam seus pingos. O texto começaria falando sobre o início da vida. A frase que falaria sobre a morte terminaria na palavra acabar. O problema se deu em admitir um saber: ela sabe disso. Pode até ser que ela saiba e que, de alguma forma, nós todos sabemos que o dia derradeiro chegará. Mas, tentamos a todo custo não saber. Assim, podemos continuar errando, e justificando estes erros sem fim. Quando justificamos um erro tentamos produzir um acerto. Ao acertar aquilo que é falhado não se revela, ficamos menos angustiados e seguimos esperando o famoso fim das histórias que se iniciam com Era uma vez..., e viveram felizes para sempre.

Corrigiria a frase se este fosse o caso, mas como ela revela algo a mais, prefiro deixar como está. Afinal, "a vida surge para acabar, ela sabe disso ."