segunda-feira, 23 de abril de 2012

Por uma vida melhor! ...melhor para quem?


Recebi na semana passada um email com o seguinte assunto: “Petição - Contra a lei que proíbe a leitura de Guimarães Rosa na escola”.

Bom, fui atrás da informação e, de fato, existe um Projeto de Lei em Minas Gerais do deputado Bruno Siqueira (PMDB) que “proíbe a distribuição, na rede de ensino pública e privada do Estado de Minas Gerais, de qualquer livro que contrarie a norma culta da língua portuguesa.

O Projeto não se aplica apenas a “livros didáticos, paradidáticos ou literários” que, supostamente “violem de alguma forma o ensino correto da gramática”, mas abrange também a conteúdos que apresentam “elevado teor sexual, com descrições de atos obscenos, erotismo e referências a incestos ou apologias e incentivos diretos ou indiretos à prática de atos criminosos.

O deputado critica o livro “Por uma vida melhor”, da ONG Ação Educativa, distribuído em algumas escolas pelo Ministério da Educação. O tal livro defende a forma popular de falar como alternativa à norma culta da língua portuguesa, desta forma, enfatiza-se a necessidade de se trocar os conceitos de “certo e errado” por “adequado e inadequado”. Os autores argumentam que este é destinado à Educação de Jovens e Adultos e, o capítulo que suscitou a questão, chamado de “Escrever é diferente de falar”, propõe apresentar as diferenças entre a norma culta e as variantes que se aprende até chegar a escola. Assim, frases como “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”, podem ser empregados em locais e momentos próprios. Neste capítulo, argumenta-se ainda sobre o uso de um tipo ou outro da língua a partir do lugar social que se ocupa: “As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio —vale lembrar que a língua é um instrumento de poder—, essa segunda variante é chamada de ‘variedade culta’ ou ‘norma culta’, enquanto a primeira é denominada ‘variedade popular’ ou ‘norma popular’”.  

Nem todos pensam assim. Siqueira faz uso da nota publicada pela Academia Brasileira de Letras (ABL) que critica não apenas o livro, mas também sua utilização em salas de aula. Num outro artigo publicado na ABL, afirma-se que "livros como esse reforçam a exclusão social", e ainda, “quando o aluno assim (des)preparado for levado a um teste de emprego, sem falar em concursos, será logo discriminado” (sic).

Questão: (des)preparado para quê?



Bom, finalizo concordando com a jornalista Eliane Brum: para se dizer “os livro” ninguém precisa de escola. É óbvio que a língua, como coisa viva que é, também é política. Mas a política de inclusão contida no texto do livro pode estar equivocada. E a discussão sobre o tema, seja de um lado ou de outro, poderia ser mais interessante se fosse menos sobre política – e mais sobre educação.

Quem já pediu “um chopps e dois pastel” levante a mão...  \o

Abaixo-assinado contra a lei que proíbe a leitura de Guimarães Rosa na escola: http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoVer.aspx?pi=P2012N23620

Para saber mais: 
Academia Brasileira de Letras não concorda com livro adotado pelo MEC: http://www.publishnews.com.br/telas/noticias/detalhes.aspx?id=63396


O que "os livro" contam?

Por Eliane Brum em 23/05/2011

Li o capítulo do livro "Por uma vida melhor", que vem causando polêmica há mais de uma semana na imprensa e na comunidade acadêmica. O livro é distribuido pelo Ministério da Educação para ser utilizado pelas escolas públicas na Educação de Jovens e Adultos e foi coordenado pela Ação Educativa – ONG pela qual tenho grande respeito pelo trabalho que realiza no reconhecimento e ampliação das vozes da cultura, especialmente a das periferias. Copio o trecho da discórdia aqui – e sugiro que o leitor leia o capítulo inteiro, intitulado “Falar é diferente de escrever”. É importante ler o texto na fonte para que possamos pensar juntos e para que cada um possa formar sua própria opinião.
 
O trecho que gerou a polêmica é este:
“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.

Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:

O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:
Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.

Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.”

Ao ler o capítulo inteiro, é fácil perceber que, em nenhum momento, os autores do livro afirmam que não se deve ensinar e aprender a “norma culta” da língua. Pelo contrário. Eles se dedicam a ensiná-la. Logo na primeira página, é dito: “Você, que é falante nativo de português, aprendeu sua língua materna espontaneamente, ouvindo os adultos falarem ao seu redor. O aprendizado da língua escrita, porém, não foi assim, pois exige um aprendizado formal. Ele ocorre intencionalmente: alguém se dispõe a ensinar e alguém se dispõe a aprender”. Mais adiante, os autores estimulam o aluno a ler e a escrever – e a insistir nisso, mesmo que possa parecer difícil, porque é lendo e escrevendo que se aprende a ler e a escrever.

Não há, portanto, nenhum complô contra a língua portuguesa, como algumas intervenções fizeram parecer. Nem mesmo caberia tanto barulho, não fosse uma ótima oportunidade para pensarmos sobre a língua. E o debate das ideias sempre vale a pena. É mais interessante, porém, quando partimos das dúvidas – e não das certezas. Não custa perguntar uma vez por dia a si mesmo: “Será que eu estou certo?”. Ninguém está velho demais, ou sábio demais, ou tem diplomas demais que não possa duvidar e aprender. Um professor que pensa que sabe tudo não é um professor – é um dogma. E dogmas cabem nas religiões e nas ditaduras – e não na escola e na democracia.

Há algumas afirmações no texto que, em minha opinião, merecem uma reflexão mais atenta. E o trecho de “Os livro” é apenas uma delas. Em outro momento, os autores dizem o seguinte:

“Em primeiro lugar, não há um único jeito de falar e escrever. A língua portuguesa apresenta muitas variantes, ou seja, pode se manifestar de diferentes formas. Há variantes regionais, próprias de cada região do país. (...) Essas variantes também podem ser de origem social. As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular. Contudo, é importante saber o seguinte: as duas variantes são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros. Esse preconceito não é de razão linguística, mas social. Por isso, um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”.

É verdade que a língua pode ser um instrumento de dominação – e foi ao longo da História não só do Brasil, mas do mundo. O português mesmo é a língua dos colonizadores – e foi sendo transformado por falantes vindos de geografias e de experiências diversas ao longo dos séculos, num constante movimento. Assim como a apropriação da palavra escrita e a ampliação do acesso à escola estão na base de qualquer processo igualitário. Também é verdade que os pobres sempre foram discriminados por tropeçarem nas palavras e na concordância. Basta lembrar as piadas que faziam com Lula porque no início de sua carreira política ele falava “menas” – em vez de menos. A solução para a discriminação, sempre uma indignidade, não foi afirmar que “menas” também era correto.

O que discordo no capítulo polêmico é exatamente o caminho que o livro propõe para a inclusão. Primeiro, acho complicado afirmar que usar “a norma culta” ou a “norma popular” é uma questão de ocasião. Como neste trecho: “A norma culta existe tanto na linguagem escrita como na linguagem oral, ou seja, quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta”.

Aceitar que está correto dizer “Os livro” – ou que basta aprender onde cabe a “norma popular” e onde é mais apropriada a “culta” – pode significar aceitar a dominação e acolher o preconceito. Quem fala e escreve “os livro” o faz não por escolha, mas porque lhe foi roubado o acesso à educação. É verdade que quem assim se expressa supostamente comunica o mesmo que quem respeita a concordância. E o objetivo maior da língua é permitir a comunicação. Mas, se você afirma que a concordância ou não é apenas uma questão de ocasião, você corre o risco de estar acolhendo a discriminação – e não incluindo de fato.

A inclusão real só vai acontecer quando a escola pública oferecer a mesma qualidade de ensino recebida pelos mais ricos nas melhores escolas privadas. Quando o Estado for capaz de garantir a mesma base de conhecimento para que cada um desenvolva suas potencialidades. E este é o problema do país: uma educação pública de péssima qualidade, com adolescentes que chegam ao ensino médio sem condições de interpretar um texto – e muitas vezes incapazes até mesmo de ler um texto.

O que os mais pobres precisam não é que alguém lhes diga que expressões como “os livro” é bom português, mas sim uma escola que ensine de fato – e não que finja ser capaz de ensinar. Para dizer “os livro” ninguém precisa de escola. É óbvio que a língua, como coisa viva que é, também é política. Mas a política de inclusão contida no texto do livro pode estar equivocada. E a discussão sobre o tema, seja de um lado ou de outro, poderia ser mais interessante se fosse menos sobre política – e mais sobre educação.

Dominar as regras é importante até para poder quebrá-las. É preciso conhecer profundamente a origem, a estrutura da língua, para poder brincar com ela. Você precisa partir do parâmetro para reinventá-lo na escrita. Quando o personagem de um romance que se passa na periferia de uma grande cidade diz “Os livro”, seu autor sabe que a concordância correta é “os livros”. Quando ele escolhe colocar essa construção na boca do personagem, há uma intenção literária. Ele está nos dizendo algo muito mais profundo do que uma mera equivalência poderia sugerir. Se você elimina essa possibilidade, pode estar eliminando a denúncia da dominação ou a possibilidade do estranhamento. (Ao final do capítulo polêmico, aliás, há um texto bem interessante sobre a visão de mundo contida na escolha da linguagem escrita, desenvolvido a partir do poema “Migna terra”, de Juó Bananére.)

Quando alguém é discriminado por dizer “Os livro” não me parece ser “um preconceito linguístico”, como os autores afirmam, mas um preconceito. Ponto. Ninguém tem o direito de zombar de outro porque ele não conhece as regras gramaticais – ao contrário, deve ajudá-lo a encontrar os meios de aprender. E é nesse ponto que me parece que pode existir também um equívoco na compreensão do que é a linguagem popular.

Não sou linguista, nem gramática, nem professora de português. Estou sempre estudando para não cometer erros ao escrever, mais ainda agora com a nova ortografia. Mas, mesmo com a gramática e o dicionário já bem gastos pelo uso, às vezes me acontece de atropelar a língua. Acho, porém, que entendo um pouco da linguagem das ruas. E nisso tenho algo a dizer.

Percorro o Brasil há mais de 20 anos ouvindo histórias de gente – e muitos dos que escutei eram analfabetos. Sempre defendo que a principal ferramenta do repórter é a escuta. E é justamente esta escuta que me ensinou que a linguagem popular é muito variada – e muito, muito sofisticada mesmo. Seguidas vezes, meu desafio é apenas escutar com redobrada atenção para reproduzir pela escrita o que foi inventado pela fala. Porque há uma recriação de mundo em cada canto, contida nas pessoas a partir de experiências as mais diversas. É essa sofisticação da linguagem que me abre as portas para o universo que me propus a contar.
 
Com frequência eu penso, diante de um analfabeto nos confins do Brasil: “Nossa! Isso é literatura pela boca!”. E é. Guimarães Rosa não reinventou a língua portuguesa apenas porque era um gênio. Acredito que era um gênio – mas acredito também que ele bebeu em genialidades orais do sertão do qual se apropriou como poucos.

Então, acreditar que a linguagem popular (ou “variante popular” ou “norma popular”) é dizer coisas toscas como “os livro” pode significar subestimar a riqueza e a diversidade de expressão do povo. Sempre lamentei que as pessoas que me contavam suas histórias não tivessem tido acesso à escola, devido à abissal desigualdade do Brasil, para que não precisassem de mim para transformar em escrita as belas construções, os achados de linguagem que saíam de sua boca.
 
Nada a ver com “os livro”. Posso estar errada, mas me arrisco a afirmar que o povo brasileiro é muito melhor do que isso. Se o Estado algum dia garantir escola pública de qualidade e professores qualificados, bem pagos e dispostos a ensinar, o português será uma língua muito mais rica também na expressão escrita – como já é na oral.

sábado, 14 de abril de 2012

Recado às seguradoras

"Eu gostaria de assinalar aqui um certo aspecto da análise que não é visto: seu aspecto de seguro contra acidentes, de seguro contra doenças. Afinal, é muito engraçado observar - pelo menos a partir do momento em que um analista ganhou o que se chama experiência, ou seja, tudo aquilo que, em sua própria atitude, muitas vezes ele ignora - como são raras as doenças de curta duração no transcurso das análises, como, numa análise que se prolongue um pouco, os resfriados, as gripes, tudo isso se apaga, e, mesmo com respeito às doenças de longa duração, se houvesse mais análises na sociedade, passaríamos melhor. Acho que os seguros sociais e os seguros de vida deveriam levar em conta a proporção de análises na população para modificar seus prêmios." (Lacan, 2005, pg. 142).

LACAN. Jacques. Passagem ao ato e acting out. In: O Seminário, livro 10: a angústia; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final Angelina Hatari e preparação de texto André Telles; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

sábado, 7 de abril de 2012

Sublimação no octógono

"Sublimação: processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividade de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e em que visa objetos socialmente valorizados."

É assim que Jean Laplanche define a sublimação em seu Vocabulário da Psicanálise (2001, p. 495). O conceito freudiano evoca ao mesmo tempo o termo "sublime", usado para designar uma produção que sugira a grandeza em uma obra de arte, assim como o termo "sublimação" utilizado na química para referir ao processo que faz um corpo passar do estado sólido para o estado gasoso.

Freud dizia que a pulsão sexual põe à disposição do trabalho cultural grandes quantidades de forças deslocando suas metas sem, contudo, perder sua intensidade. Mas este processo não está muito bem delimitado, por exemplo, deverá incluir-se na sublimação o conjunto do trabalho de pensamento ou apenas certas formas de criação intelectual? O fato das atividades sublimadas serem numa determinada cultura objeto de uma valorização social especial deverá ser considerado uma característica primordial, ou esta engloba também algumas atividades adaptativas como o trabalho ou o ócio? Nas Novas Conferências Introdutórias, 1932, Freud articula que a mudança que se supõe intervir no processo pulsional diz respeito à meta, ou simultaneamente, à meta e ao objeto da pulsão. "Designamos por sublimação uma certa espécie de modificação da meta e mudança de objeto em que entra em consideração a nossa avaliação social".

O ponto que queremos chegar é se o trabalho econômico da sublimação pode ser aplicado a atividades outras, como o MMA (mixed martial arts), por exemplo. Sabe-se que neste tipo de artes marciais inclui tanto golpes de combate em pé assim como técnicas de luta no chão. Uma espécie de vale-tudo, mas que não é tomado ao pé-da-letra. Há regras. Mas como podemos relacionar a sublimação e a execução de um esporte "violento" (as aspas são para os adeptos do esporte)?

Bom, voltemos à psicanálise. No trabalho intitulado de A Pulsão e suas Vicissitudes, de 1915, Freud compara a pulsão a um estímulo fisiológico, ou seja, baseando-se no arco reflexo, segundo o qual um estímulo vindo do exterior atinge um tecido vivo e é novamente reconduzido para o exterior por meio de uma ação. A questão aqui é que esta ação deva retirar do tecido a influência do estímulo. Nesse sentido a pulsão seria um estímulo psíquico. Freud adverte que existem para o psíquico outros estímulos que se comportam muito mais parecidos como o estímulo fisiológico. O estímulo pulsional não vem do mundo externo, mas do próprio interior do organismo, assim age diferentemente do psíquico e requer outras ações para eliminá-lo. 

Vou tentar usar um outro ponto para explicar o funcionamento psíquico. Freud escreve no Projeto para uma psicologia científica (1895) que, "uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação para a 'memória'." Esta consideração reformulou o funcionamento da memória em conjunto com o aparelho psíquico. Falando em memória, você se lembra deste dia?



O fato de poder acessar a memória facilmente, incluindo o lugar onde estávamos neste exato momento, nos faz pensar que o aparelho da memória seja algo da ordem da consciência, certo? Errado.

No texto “Regressão”, do Capítulo VII, A psicologia dos processos oníricos, encontrado na segunda parte da Interpretação dos sonhos (1996, p. 564 a 579), temos um desenho de um aparelho que aponta para uma direção, indo da extremidade perceptiva para a extremidade motora, assim:


Este aparelho segue a mesma ideia do aparelho reflexo que anunciamos anteriormente, ou seja, dado um estímulo qualquer este entra no organismo por um lado (Pcpt) e tem uma saída como resposta (M). Freud nos diz que há um sistema logo na parte frontal do aparelho que recebe os estímulos receptivos, mas não preserva nenhum traço deles, e portanto, não tem memória. Já por trás dele há um segundo sistema que transforma as excitações momentâneas do primeiro em traços permanentes. Isso explica que quando lhe foi dado o estímulo sobre o 11 de setembro de 2001, logo você foi capaz de acessar o aparelho mnêmico. Não há apenas um, mas diversos elementos mnêmicos (Mnem), nos quais uma única excitação, deixa fixada uma variedade de registros diferentes. 

Nossas lembranças, diz Freud, são inconscientes por si mesmas. Podem tornar-se conscientes, mas podem produzir todos os seus efeitos quando em estado inconsciente. Àquilo que descrevemos como nosso "caráter" baseia-se nos traços mnêmicos de nossas impressões, além disso, as impressões que maior efeito causaram em nós - as de nossa primeira infância - são as que nunca se tornam conscientes. Quando Freud analisava os processos oníricos isso o levou a pensar na outra extremidade do aparelho, ou seja, é na extremidade motora do aparelho que deve situar-se o sistema crítico. 


O último sistema do aparelho é o pré-consciente (Pcs), os processos excitatórios nele ocorridos podem penetrar na consciência sem maiores empecilhos, desde que certas condições sejam satisfeitas, como por exemplo, que eles atinjam certo grau de intensidade, que a atenção esteja distribuída de uma certa maneira, etc. Este é o sistema que detém a chave do movimento voluntário. Pode-se entender que estamos sujeitos a todo tipo de estímulo, uma vez que na extremidade perceptiva não há um sistema crítico que barre a entrada de novos estímulos. A mesma ideia segue para os traços mnêmicos, é possível que sejamos capazes de armazenar qualquer informação, porém o fato de nos lembrarmos de algumas e de outras não, nos sugere que deve existir um mecanismo que faça com que algumas informações sejam selecionadas. A coisa começa a fazer mais sentido (outros dirão que não) quando o estímulo que passou pelos sistemas mnêmicos adentram no inconsciente. Freud descreveu na Interpretação dos Sonhos, os mecanismos de condensação e deslocamento, que mais tarde Lacan chamou de metáfora e metonímia, estes mecanismos trabalham para que os estímulos possam através de cadeias associativas saírem para a consciência sem maiores problemas. Assim, um estímulo qualquer que adentra através do aparelho perceptivo pode sair pela consciência como uma grande gargalhada, por exemplo. Compreender este processo já é meio caminho andado.

O que conhecemos por pulsão se encontra dentro deste aparelho descrito por Freud. Há no estímulo pulsional uma satisfação, no sentido de que o estímulo segue uma direção e tende a descarga. Até aqui pudemos perceber dois termos referentes à pulsão: sua pressão (Drang), ou a força propulsora natural de todo estímulo e, sua finalidade (Ziel) que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da pulsão. Faltam ainda seu objeto (Objekt) e sua fonte (Quelle).

O objeto de uma pulsão é a coisa em relação à qual a pulsão pode atingir sua finalidade. É o que há de mais variável numa pulsão e, originalmente não está ligado à ela, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. Com relação a fonte, só podemos estar falando de algo da ordem do sexual. Freud aponta que as pulsões podem passar pelas seguintes vicissitudes:
Reversão a seu oposto;
Retorno ao próprio eu do indivíduo;
Repressão e;
Sublimação;

Só agora podemos chegar a propor alguma análise. Pode-se começar este trabalho usando um que o próprio Freud analisou. O texto de 1910 intitulado de Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, traz um bom exemplo que inclui a sublimação como saída para a pulsão sexual. Nos primeiros momentos do texto, Freud faz um levantamento da vida de Leonardo, o que chama a atenção é a falta de relacionamentos amorosos na vida do artista. "No seu caso parece que foi isso o que realmente sucedeu. Seus afetos eram controlados e submetidos ao instinto da pesquisa; ele não amava nem odiava, porém se perguntava acerca da origem e do significado daquilo que deveria amar ou odiar. Parecia, assim, forçosamente, indiferente ao bem e ao mal, ao belo e ao horrível. Durante esse trabalho de pesquisa, o amor e o ódio se despiam de suas formas positivas ou negativas e ambos se transformavam apenas em objeto de interesse intelectual." Não nos parece que Leonardo era insensível à paixão, o que acontecia era converter sua paixão em sede de conhecimento e belas obras de arte.

Freud relata que a observação da vida cotidiana das pessoas revela que a maioria conseguiu orientar uma boa parte das forças resultantes da pulsão sexual para sua atividade profissional. Este é o trabalho da sublimação, que tem a capacidade de substituir seu objetivo imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais valorizados. Aceitamos este processo como verdadeiro sempre que na história da infância de uma pessoa - isto é, na história de seu desenvolvimento psíquico - evidenciamos que, na infância, esse instinto foi usado para satisfazer interesses sexuais. Durante a infância, muitas crianças descarregavam suas pulsões contra outras crianças de maneira agressiva, através das mordidas, por exemplo. Com o passar dos anos este tipo de descarga vai sendo limitado, não podemos mais morder a vendedora de uma loja só porque o preço do produto está maior do que o esperado. 

Uma das regras do MMA é que os lutadores que não demonstrarem agressividade, a luta deve ser reiniciada. Uma possibilidade de que a agressividade desferida nos golpes seja um destino de uma pulsão, é verdadeira, porém não podemos falar de sublimação, mas sim de catarse. Assim como acontecia nas tragédias do teatro grego, quando assistimos a um filme ou jogando videogame. Contudo, devemos levar em conta de que estamos falando de uma agressividade contida, regrada. Aliás outra regra demonstra que os ataques não são mais algo do infantil: é proibido cabeçada, dedo no olho, morder, puxar cabelo, beliscar, arranhar e cuspir no adversário. 

Bom, mas quando um lutador de MMA pode ter feito uso da sublimação? Vamos pensar no esquema do aparelho psíquico proposto por Freud. Se um estímulo, como uma surra na infância, por exemplo, entra no sujeito pelo aparelho perceptivo, passando pelos traços mnêmicos, isso faz com que algo desta surra fique marcado na memória. Ao passar pelo inconsciente e sofrendo os efeitos da condensação pode ganhar uma significação desde "eu levei uma surra" até "quero um bolo de chocolate". O fato é que outras surras durante a vida do sujeito pode remetê-lo à surra ocorrida na infância. Se, a resposta da criança após a surra foi bater em outras crianças, quando adulto ao levar outra surra sua resposta pode ser bater na esposa, por exemplo. Ao invés disso, caso a resposta do sujeito for se tornar um importante cientista empenhado na cura do câncer ou um grande artista, aí sim, poderíamos pensar no uso da sublimação.

O que aconteceu com Leonardo da Vinci, ou seja, a ausência de relacionamentos sexuais e a direção de suas pulsões para o campo da ciência assim como da arte, é claro para nós e isso nos serve de modelo. Mas, não podemos esperar que todos os outros sejam capazes de tal façanha. É preciso considerar outras escalas em que a sublimação ocorra, sem chegar a algo tão grandioso como o caso de da Vinci. 

Vamos pensar no esquema do aparelho psíquico novamente, mas desta vez acrescentando alguns pontos levantados por Lacan. Este articulou que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. O significante "surra" pode não referir-se apenas ao real da agressão física, mas ganhar outras considerações como "apanhar da vida". Assim, da mesma forma o sujeito pode considerar levar uma surra ao passar por condições de vida adversas. Segue um exemplo, o caso de uma garota de 16 anos que manifesta o desejo de se tornar assistente social. Esta garota sofreu muito cedo à morte dos pais, ficando aos cuidados da avó que também veio a falecer, mora atualmente num abrigo e vem se dedicando a cursos técnicos que trabalham com legislações. Não é algo tão grandioso como o caso do Leonardo da Vinci, mas também podemos perceber os mecanismos da sublimação aqui. Da mesma forma, um sujeito que "apanhou" muito na vida, pode vir a dedicar suas pulsões na delinquência, ou de outra forma, tornar-se um campeão "batendo" muito. 

O que é consciente ou inconsciente para o sujeito? Talvez seja claro seus objetivos, ou o fato de que deseje ser um lutador, e até mesmo seja claro sua história de vida que o levou até ali, porém os mecanismos envolvidos, as pulsões, quais conteúdos estão condensados, entre outros mecanismos, isto é inconsciente ao sujeito. Também devemos considerar que para este mesmo sujeito, se a sublimação não fosse uma possibilidade - econômica como diria Freud - da pulsão, poderíamos vislumbrar algo que a medicina viria a considerar como um transtorno ou algum outro tipo de adoecimento psíquico. Esta seria uma outra saída para o sujeito.

Mais uma dúvida. Como isto tudo não pode ser considerado como uma outra vicissitude da pulsão, como a reversão a seu oposto? Freud usou o exemplo deste tipo de vicissitude através da transformação da atividade em passividade (olhar em ser olhado) e na transformação em seu contrário, como é o caso do amor que dá lugar ao desamor. O que diferencia aqui é o contexto, ou relevância social do destino da pulsão, o fato de que o significante "bater" possa ser usado num esporte em que existam regras, e que, no momento atual tenham grande relevância social como o MMA, também pode se referir aos mecanismos de sublimação. "Designamos por sublimação uma certa espécie de modificação da meta e mudança de objeto em que entra em consideração a nossa avaliação social."


Referencial:
FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]). In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos, Vol. I. (1886 - 1899). Disponível em http://www.mediafire.com/?k468m09mnfg.

_______________. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910). In: Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos, Vol. XI (1910[1909]). Disponível em http://www.mediafire.com/?k468m09mnfg.

_______________. A pulsão e suas vicissitudes (1915). In: A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos, Vol. XIV (1914 - 1916). Disponível em http://www.mediafire.com/?k468m09mnfg.

_______________. Novas conferência introdutórias sobre psicanálise (1933[1932]). In: Novas conferências introdutórias e outros trabalhos, Vol. XXII (1932 - 1936). Disponível em http://www.mediafire.com/?k468m09mnfg.  

_______________. A interpretação dos sonhos (Primeira parte). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Vol. IV; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_______________. A interpretação dos sonhos (Segunda parte) e sobre os sonhos. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Vol. V; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise / Laplanche e Pontalis; sob a direção de Daniel Laplanche; tradução Pedro Tamen - 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Namorada


Na última Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que aconteceu entre os meses de outubro e novembro de 2011, foi exibido -gratuitamente, o filme Namorada, sob a direção de Justin Lerner. O filme trata sobre um momento específico da vida de Evan. Evan é um jovem com síndrome de Down (SD) que mora com a mãe em uma cidade estadunidense e, após receber um dinheiro inesperado, tenta arrumar uma namorada. Este seria um ótimo cenário para um bom filme. Seria, se o diretor não apelasse tanto para alguns clichês que, na tentativa de sensibilizar o espectador, acabaram atrapalhando o filme, tornando-o previsível. Poderíamos destacar o ator Evan Sneider que interpreta o também Evan no filme, contudo sem fazer disso um outro clichê.

Ora, sabe-se que a SD é uma alteração genética composta por um cromossomo a mais no par 21, daí o nome trissomia 21. Descrita em 1866 por John L. Down, a síndrome afeta o desenvolvimento do sujeito, determinando algumas características físicas e, especialmente, cognitivas. Porém, nem todos apresentam as mesmas características, nem os mesmos traços físicos, a única característica comum é o déficit intelectual. Não se pode dizer que há graus de SD, a variação das características e personalidades entre uma pessoa e outra é a mesma que existe entre as pessoas que não tem a síndrome. Sendo uma alteração genética, a síndrome de Down NÃO É UMA DOENÇA.

Isto deveria fazer com que pudéssemos enxergar a pessoa um pouco além daquilo que a diferencia. Nessa linha estamos apenas reproduzindo o modelo médico que diagnostica aquilo que escapa da norma, fora deste eixo temos os transtornos e as doenças, todos devidamente catalogados pelo Manual  Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais (DSM-IV), que já está em sua quarta versão. Só lembrando que este mesmo Manual em versões anteriores constava o “homossexualismo” enquanto transtorno.

Uma pena que na tentativa em olhar a pessoa com SD de uma outra forma, como no caso do filme, que oferece a Evan a possibilidade de um romance, temos que nesse percurso, torná-lo órfão, alvo de desprezo dos concidadãos, portador de uma situação financeira bem favorecida, e absolvido da condição de cometer erros, para só então acreditar que este possa amar como qualquer outro. É nesse sentido que acabamos caindo em outro estereótipo se olharmos Evan como um grande ator por ser portador da SD, e não porque é digno de ser um bom ator como qualquer um que se disponha a.

Muitos dos portadores trazem também em suas histórias o preconceito e a discriminação, tanto no âmbito escolar como também entre os próprios familiares. Navegando em alguns sites na internet sobre o assunto, houve um que chamou a atenção. Em sua página constava os dizeres “Valorizando as diferenças”. Ótimo! Melhor ainda se pudéssemos, nestes casos, valorizar as igualdades.

Fontes:  http://www.fsdown.org.br/site/pasta_116_0__o-que-e-sindrome-de-down-.html
              http://35.mostra.org/filme/girlfriend/