sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Uma autoanálise, o mecanismo de condensação e mais nada

Estava ao lado de uma pessoa que colocou para tocar uma música do Al Green: How can you mend a broken heart?. Disse para esta pessoa que não conhecia o cantor, mas conhecia a música, pois afirmei que esta fazia parte de um filme. Não me lembrava o nome do filme, apesar de ter assistido ao mesmo algumas vezes, inclusive recentemente. Estranhei isso na hora, por mais que me esforçava para lembrar, menos recordava.

Disse que o filme era com a Julia Roberts e Hugh Grant e, a música tocava na parte em que o personagem de Grant anda por uma feira, desolado e as estações vão mudando. Esta cena se passa após a partida da personagem interpretada pela Julia Roberts, deixando-o com o coração partido.

A pessoa com quem conversava me disse o nome do filme: Notting Hill

Por dois dias fiquei com essa música na cabeça, acordava e já colocava a música para tocar. De certa forma, me sentia animado apesar da música ter um ar "deprê".

Tive uma surpresa quando fui assistir a cena na qual descrevi sobre o filme Notting Hill. A música é outra, totalmente diferente da que estava imaginando!!! Fiquei pensando "de onde, diabos, eu conheço essa música então?!" Como estava no YouTube, vi a música associada ao filme O Livro de Eli, com Denzel Washington. Fiz algumas associações, que foram:

- O Livro de Eli se passa num mundo desolado, e a cena em que ele ouve a música também é um momento introspectivo, assim como o momento em que William (Hugh Grant) caminha pela feira em Notting Hill. Essa cena se passa logo após William ter uma decepção com a famosa Anna Scott (Julia Roberts), momentos antes haviam tido um bom dia juntos. Minha confusão talvez tenha levado em consideração a palavra "desolado". Passei, recentemente, por uma situação que me trouxe um sentimento de "desolação". Desta forma, não preciso deitar-me no divã para entender que ter vivido esta situação me deixou desolado e, ao ouvir uma música que é parte de um filme num mundo também desolado, associei o sentimento com o filme. Coloquei a música no filme errado, mas mantive o sentimento.

- Sempre troco o nome do filme Notting Hill por Nothing Hill. Pois, "nothing" é "nada". Quem ao se sentir desolado se sente um nada, levante a mão... o/

- O nome da canção de Green é How Can You Mend a Broken Heart?, ou Como Você Pode Consertar um Coração Partido?. Todas as associações estão ligadas com essa experiência que tive, não muito animadora. O jogo de palavras que desencadeou as distorções é muito claro para ilustrar o mecanismo que a psicanálise chama de condensação, ainda mais quando se tem uma ideia maior sobre o que o inconsciente é capaz de fazer com as palavras, tomadas (num sentido lacaniano) como significantes. Estes podem expressar/conter diversas possibilidades despertando toda uma cadeia discursiva. Cometemos muitos lapsos durante nossos discursos, a maior parte deles passa despercebido.

- Uma outra possibilidade me ocorreu depois de assistir ao filme Notting Hill, novamente. A música do Green, realmente toca neste filme, porém não na cena em que acreditei. A música acompanha o personagem William, não na segunda decepção com Anna Scott, mas sim na primeira. William é convidado para subir até o apartamento da estrela e acaba encontrando o namorado de Anna. Ao sair do hotel, desolado, caminha pela calçada do hotel ao som de How Can You Mend a Broken Heart?. De fato, meu engano não foi tão grande assim. Foi fácil confundir as decepções de William com Anna, ao som da música que marca esta situação na primeira decepção. Trocar pelo segundo "fora" seria exercício demais para minha memória. Contudo, foram vários atos falhos.  

A música condensava ambas as cenas e também os filmes. Meu ato falho revela um sentimento, que veio à tona ao ouvir a música. Da mesma forma, minha decepção também se deu mais de uma vez. Acrescenta-se a isso o significante "desolado", nesse caso, acompanhou William em todas as decepções e passou do cenário de O Livro de Eli para as cenas em Notting Hill.

Freud já dizia que o trabalho de condensação é visto com máxima clareza ao lidar com palavras e nomes. É verdade, em geral, que as palavras podem ser tratadas, assim como ocorre nos sonhos, como se fossem coisas, e por essa razão tendem a se combinar exatamente do mesmo modo que as representações de coisas. 

O que acontece no mecanismo de condensação é essa ligação de ideias, clara no exemplo que forneci sobre a música de Al Green. O que me fez refletir foi o fato de ter percebido um lapso com relação a qual filme ela tocava, ou melhor, no nome do filme, pois já adiantava a cena (erroneamente, por sinal). 

Pode-se ver na condensação um efeito da censura e um meio de escapar dela, complicando a leitura do conteúdo manifesto. 

Uma representação única representa por si só várias cadeias associativas. Do ponto de vista econômico, é investida das energias que, ligadas a estas diferentes cadeias, se adicionam a ela. Por exemplo, na Interpretação dos Sonhos (1900), o contar o sonho é uma versão compacta deste, portanto condensada. O conteúdo manifesto apresenta-se lacônico. A condensação não é digna apenas dos sonhos, em A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), e O Chiste e as suas Relações com o Inconsciente (1905), Freud estabelece que a condensação é um dos elementos essenciais da técnica do chiste, do lapso, do esquecimento de palavras e por aí vai...

Vou acrescentar ainda as 3 cenas:
Ah! Enquanto adicionava os vídeos uma pessoa que estava próxima ouviu a música e disse:
- Esta é aquela música do filme... acho esse filme triste... com a...
- Julia Roberts? arrisquei.
- Não! respondeu. É com aquela menina... e o Richard Gere! 





segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A escrita e a loucura ... A loucura e a escrita



Assim como Rubem Fonseca se autoriza a dizer que escrever é uma forma socialmente aceita de loucura, da mesma forma, há na loucura uma forma socialmente aceita de escrita. Em outras palavras, a escrita permite ao louco uma organização que lhe escapa na fala. Esta mesma (des)organização é o que põe o psicótico à margem do que estamos nomeando como "socialmente aceito", pois aqueles que aceitam, seguem a lógica neurótica. Não quero citar James Joyce!

Ao passo em que tiramos a loucura das sombras, da condição de código classificatório, da dissociação de funções, do déficit, ela então tem algo a nos ensinar, revela o que está no dito normal. Sendo assim, tem a ver com qualquer um.

Lacan se questionava em seu Seminário (Livro 3 - as psicoses), sobre o que diz o sujeito num certo período de seu delírio? "Que há significação. Qual, ele não sabe, mas ela vem no primeiro plano, ela se impõe, e para ele ela é perfeitamente compreensível". Se fica fora dos discursos neuróticos é só porque os significantes deslizam numa cadeia outra. Se podemos admitir que há linguagem na psicose, podemos também concordar que da mesma forma, há psicose na linguagem.

Na psicose, alguma coisa que é da ordem da letra falha. Toma-se as palavras à letra, assim a frase "se afogar num copo d'água" pode ser o suficiente para que um esquizofrênico se recuse a beber água, a não ser numa garrafa. Freud já adiantava esta distinção entre letra e palavra no capítulo 7 de O Inconsciente. Dizia que as palavras são elementos constitutivos do sistema Consciente/Pré-consciente. "A representação consciente compreende a representação de coisa, mais a representação de palavras que lhe pertence; a representação inconsciente é representação apenas de coisa". Ora, isso não explica a possibilidade de se metaforizar, típico da neurose? Já aquele que tem seu funcionamento, seu modus operandi, estruturado numa psicose as metáforas, ou melhor, a representação de coisa + representação de palavra, fica desarticulada. O ato da escrita oferece a possibilidade desta junção.

O psicanalista Christian Dunker escreveu um artigo em que relaciona o enlouquecimento de Syd Barret e suas composições no Pink Floyd, numa espécie de universalidade contida na experiência da psicose. "...Barret está fora do discurso, mas não fora da linguagem." Desta forma, "...é fácil perceber que Pink Floyd está para a música como Joyce está para a literatura", diz o autor.

Ao escrever, ao estar preso/livre nas cadeias que o ato de escrever promove, o psicótico, pode se dar ao luxo de também ser comparado ao escritor imaginativo, letrado, inteligente. E, agora noutro sentido: louco!

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Moinhos de vento

"(...) Nisso, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que há naquele campo, e, assim que D. Quixote os viu, disse a seu escudeiro:

- A ventura está guiando nossas coisas melhor do que pudéramos desejar; porque, como podes ver, amigo Sancho Pança, ali se descobrem trinta ou poucos mais descomunais gigantes, com os quais penso travar batalha para tirar a vida de todos, com cujo despojo começaremos a enriquecer, porque esta é boa guerra, e é grão serviço a Deus tirar tão má semente da face da terra.

- Que gigantes? - disse Sancho Pança.

- Aqueles que ali vês - respondeu seu senhor -, dos braços longos, que os costumam ter alguns de quase duas léguas.

- Veja vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que ali aparecem não são gigantes, mas moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as pás, que, giradas pelo vento, fazem mover a mó.

- Bem se nota - respondeu D. Quixote - que não és versado em aventuras: eles são gigantes; e se tens medo sai daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.

E, dizendo isso, esporeou seu cavalo Rocinante, sem atender aos gritos que seu escudeiro Sancho lhe dava, advertindo-o de que sem dúvida alguma eram moinhos de vento, e não gigantes, aquele que ia acometer. Mas ele estava tão convencido de que eram gigantes, que nem ouvia os gritos do escudeiro Sancho nem conseguia ver, conquanto estivesse já bem perto, o que eram, antes ia dizendo aos brados:

- Não fuxais, cobardes e vis criaturas, que é um só cavaleiro quem vos acomete.

Levantou-se nisso um pouco de vento, e as grandes pás começaram a mover-se, razão por que, vendo-o D. Quixote, disse:

- Pois, ainda que movais mais braços que os do gigante Briaréu, mo haveis de pagar.

E, em dizendo isto, e encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que em tal transe o socorresse, bem coberto por sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo o galope de Rocinante e investiu contra o primeiro moinho que tinha pela frente; e, dando uma lançada na pá, girou-a o vento com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando atrás de si o cavalo e o cavaleiro, que foi rodando em mui mau estado pelo campo. Acorreu Sancho Pança em seu socorro, a todo o correr de seu asno, e quando chegou viu que não podia mexer-se: tamanho fora o baque que com ele levara Rocinante.

- Valha-me Deus! - disse Sancho. - Não disse eu a vossa mercê que visse bem o que estava fazendo, que não passavam de moinhos de vento, e que só o podia ignorar quem tivesse outros na cabeça?

- Cala-te, amigo Sancho - respondeu D. Quixote -, que as coisas da guerra, mais que outras, estão sujeitas a contínua mudança; tanto mais que eu penso, e é verdade, que aquele sábio Frestão que me roubou o cômodo e os livros transformou estes gigantes em moinhos para tirar-me a glória de seu vencimento: tamanha é a inimizade que me tem; mas, ao fim e ao cabo, hão de poder pouco suas más artes contra a bondade de minha espada.

- Faça Deus o que puder - respondeu Sancho Pança. (...)"

O engenhoso fidalgo D. Quixote da Mancha - Miguel de Cervantes Saavedra

Intervalo

"(...) - Vamos, peixe - disse o velho. Mas o peixe não veio. Em vez disso, continuava a flutuar no mar, e o velho pescador teve de levar a canoa para junto dele. 

Quando se aproximou dele e a cabeça do espadarte ficou junto do costado, o velho não quis acreditar no seu tamanho. Desprendeu a linha do arpão do poste, passou-a pelas nadadeiras do peixe, deu-lhe uma volta pela espada e em seguida passou a linha pela outra nadadeira deu outro nó na espada e atou a linha duas vezes, prendendo-a com força ao poste da proa. Cortou o resto da linha e foi à popa para laçar a cauda. O peixe tornara-se prateado, não tinha mais o original tom purpúreo e prateado de antes, e as listras haviam tomado o mesmo tom violeta-pálido da cauda. Eram manchas maiores do que a mão de um homem com os dedos abertos e os olhos do peixe pareciam tão destacados como a parte superior de um periscópio ou um santo numa procissão.

- Era a única maneira possível de matá-lo - disse o velho. Sentia-se melhor desde que bebera a água, sabia que já não perderia os sentidos e tinha a cabeça bastante lúcida.

'Com o tamanho que tem, deve pesar mais de quinhentos quilos. Talvez muito mais. Quanto será, se aproveitar dois terços a trinta cents o quilo?'

- Preciso de um lápis para fazer a conta - disse o velho. - Não tenho cabeça boa para contas. Mas penso que o grande DiMaggio se orgulharia muito de mim hoje. Não tenho esporas de osso. Mas as costas e as mãos doem-me de verdade. Gostaria de saber o que é uma espora de osso. Talvez eu tenha uma sem o saber. 

Prendeu o peixe fortemente à proa, à popa e ao banco transversal. Era tão grande que mais lhe parecia estar atando à sua canoa um barco muito maior. Cortou um pedaço de linha e amarrou a mandíbula inferior à espada para que a bocarra não pudesse abrir-se e navegassem da melhor maneira possível. Depois fixou o mastro e, com a vara que fazia de carangueja e com os botalós armados içou a vela. O barco começou a mover-se, e com a popa meio metida na água dirigiu-se para sudoeste.

Não precisava de uma bússola para lhe indicar onde ficava o sudoeste. Só precisava sentir os ventos alísios e o enfunar da vela. Seria bom lançar na água uma linha curta com um anzol giratório, para pescar qualquer coisa para comer e depois beber algo. Mas não conseguiu encontrar nenhum anzol, e as sardinhas já estavam estragadas. Por isso, com o arpão enganchou um molho das algas amarelas do golfo e agitou-o fortemente para que os pequenos camarões que ali se haviam abrigado caíssem na coberta do barco. Havia mais de uma dúzia deles e começaram todos a saltar como pulgas da areia. O velho cortou-lhes as cabeças com o polegar e o dedo indicador e comeu-os, mastigando também as cascas e as caudas. Eram muito pequenos mas deliciosos, além de ótimo alimento.

Ainda lhe restava um pouco de água na garrafa ele bebeu a metade, depois de comer os camarões. A canoa estava navegando bastante bem, apesar das desvantagens, e ele ia conduzindo o barco com o leme debaixo do braço. De onde se encontrava, podia ver o peixe e tinha apenas de olhar para as mãos e sentir as costas encostadas à popa para saber que aquilo realmente acontecera e não era um simples sonho. Certo momento, quando estava se sentindo muito mal, quase no fim da luta, pensara que talvez se tratasse de um sonho. Depois, quando viu o peixe dar o salto final e erguer-se no ar, ficando como que suspenso acima dele, tivera a certeza de que havia qualquer coisa de muito estranho e não pudera acreditar. Mas então quase não via nada; agora enxergava perfeitamente, como sempre.

Sabia que o peixe estava de fato ali, e suas mãos e costas não eram nenhum sonho. 'As mãos curam-se depressa', pensou o velho. 'O sangue limpou-as, e o sal da água fará com que cicatrizem. A escura água do golfo é o melhor remédio para isso. Tudo o que preciso fazer é conservar a cabeça lúcida. As mãos cumpriram sua obrigação e estamos navegando bem. Com sua boca fechada e a enorme cauda a erguer-se no ar, navegamos os dois como irmãos.' Começou a sentir-se de novo tonto e perguntou a si próprio: 'Será que é ele que está me arrastando ou eu que o estou rebocando? Se eu fosse atrás dele, a reboque, não haveria dúvida. O mesmo sucederia se o peixe estivesse dentro da canoa, com toda a sua dignidade derrotada: dessa forma também não haveria a menor dúvida.' Mas estavam navegando os dois juntos, um ligado ao outro, e o velho pensou: 'Que ele me reboque, se isso lhe agrada. Só consegui ser melhor do que ele por meio de uma traição, e ele não me desejava nenhum mal'.

Estavam navegando bem, e o velho molhava as mãos na água e tentava manter-se lúcido. Por cima deles viam-se cúmulos e cirros, e o velho sabia que isso queria dizer que a brisa duraria a noite toda. O velho pescador olhava constantemente para o peixe, para ter a certeza de que aquilo era verdade. Já havia decorrido uma hora quando o primeiro tubarão o atacou (...)"

 O Velho e o Mar - Ernest Hemingway