quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O Mundo de Charlie Brown


Recentemente, li um texto que descreve o "Mundo de Minduim" (Umberto Eco, 1976). Tive muitos heróis ao longo da infância, porém poucos foram tão significativos quanto os personagens criados por Charles M. Schulz. Ao ponto de parar o que estava fazendo para assistir as peripécias de Charlie Brown e seus amigos. Agora entendo o porquê.

Desde que o mundo é mundo, as artes puderam prosperar no âmbito de um sistema que permitisse ao artista certa margem de autonomia em troca de uma dose de condescendência para com os valores estabelecidos. É no interior desses vários circuitos de produção e consumo, que se vê agir artistas que, usando oportunidades concedidas a todos os demais, conseguem mudar profundamente o modo de sentir dos seus consumidores, desenvolvendo dentro do próprio sistema do qual é parte, uma função crítica e liberatória (Eco, 1976:283).

Originalmente publicado numa tira de um jornal estadunidense na década de 50, foi através da migração de Snoopy e a Turma do Minduim (Peanuts) para a TV que me deu a oportunidade de acompanhá-los. O formato em quadrinhos, narrava histórias que geralmente se encerram em quatro quadros, durante seu auge foi publicado em mais de 2000 jornais, em mais de 70 países. Com o advento e a popularização da TV, vários personagens dos quadrinhos foram contar suas aventuras nas ondas eletromagnéticas. A turma do Charlie Brown ganhou movimentos e vozes próprias, histórias mais longas e uma programação específica para esta mídia.

Por aqui o personagem que mais se popularizou foi Snoopy. Durante a fase escolar era comum ver o pequeno beagle em capas de cadernos, agendas, lancheiras, mochilas, borrachas, camisetas, e muitos outros produtos. Depois do desenho animado especial de Natal (A Charlie Brown Christmas), reproduzido pela primeira vez em 1965, os personagens de Schulz finalmente ganharam a  indústria cultural.

A popularização de Snoopy por aqui se deve à identificação, justamente com o personagem que não quer ser quem é. "Antístrofe contínua às angústias dos humanos, o calado cão Snoopy leva até a última fronteira metafísica as neuroses decorrentes de uma frustrada adaptação", (Eco, 1976:290). Ouvi uma anedota uma vez que dizia (mais ou menos) o seguinte: o argentino pensa que é europeu, e o brasileiro pensa que é o quê? Aquilo que se chamou de miscigenação escamoteou a identidade cultural de um povo, que muitas vezes precisa romper o silêncio de uma verdade constituída para poucos, para assumir ser o que acredita que é. Snoopy sabe que é um cachorro, ontem era um cachorro e amanhã talvez ainda continue sendo um cachorro, para ele na dialética otimista da sociedade opulenta, que consente saltos de um status para outro, não há nenhuma esperança de promoção. Por vezes, tenta o extremo recurso da humildade. Durante alguns episódios consegue roubar o beijo de uma garota, Lucy, por exemplo. Quando tem sucesso a autoconfiante Lucy coloca-o no seu devido lugar: "Arghhhh! Fui beijada por um cachoooorrrooo!". Idiossincrático que é, noite após noite teima em dormir no telhado de sua casinha de cachorro, raras vezes dentro, sendo assim, raras às vezes assume dormir na casinha de cachorro por ser um cachorro. Não se aceita a si mesmo e procura ser o que não é, personalidade dissociada como nunca se viu igual, uma vez imaginou ser o Barão Vermelho e sua casa era a aeronave. Tenta todos os caminhos da mistificação, para depois render-se à realidade, por preguiça, fome, sono, timidez, claustrofobia, negligência... É refém de um apartheid contínuo, sentir-se-á tranquilizado, mas nunca feliz.

Snoopy é o cachorro de Charlie Brown (Minduim) e com isso vamos aos outros personagens. Lucy, Patty Pimentinha, Marcie, Violeta, Linus, Schroeder, Pig Pen, a garotinha ruiva, a enigmática professora e seus Blá-blá-blás... Vivem ocupados com seus jogos e seus discursos. Nesse esquema básico, apresenta-se um fluxo contínuo de variações, segundo um ritmo peculiar a certas epopeias primitivas, ao ponto de sempre identificar o protagonista pelo seu nome e sobrenome, como um herói epônimo (personalidade lendária que empresta seu nome a alguma outra coisa). Para Eco (1976:286), a força dessa poesia ininterrupta, não pode ser descoberta lendo ou assistindo apenas uma ou duas ou oito histórias, mas só depois de haver entrado a fundo nos caracteres e situações, uma vez que a graça, a ternura ou o riso nascem da repetição, requerendo do espectador um ato contínuo e fiel de simpatia.

Nesta turma encontramos todos os problemas, todas as angústias dos adultos que estão por trás dos bastidores. As crianças de Schulz são as monstruosas reduções infantis de todas as neuroses de um moderno cidadão da civilização industrial (Eco, id.). Tocam-nos de perto, pois nos damos conta de que, se são crianças-monstros, é porque nós, adultos, as fizemos assim. Tem de tudo, Freud, a massificação, a luta frustrada pelo êxito, a busca de simpatias, de reconhecimento, a solidão, a reação imprudente, a aquiescência passiva e o protesto neurótico. No entanto, todos esses elementos não florescem tal qual os conhecemos, são pensados e reditos depois de terem passado pelo filtro da inocência. Se os problemas são vividos pelas crianças, só o são de acordo com uma psicologia infantil, e justamente por isso dão um ar tocante e sem esperança, como se de repente reconhecêssemos que os nossos males chegaram às raízes.


No centro da trama, temos Charlie Brown, ou Minduim, ingênuo, cabeçudo, sempre inábil e voltado ao insucesso (Eco, 1976:287). Reconhecemos em Charlie Brown a necessidade de comunicação e popularidade, porém o que recebe em troca, das meninas matriarcais e sabichonas que o rodeiam, o desprezo, as alusões à sua cara de lua cheia, as acusações de burrice, as pequenas maldades que machucam no íntimo. Charlie Brown, impávido procura afirmação e ao mesmo tempo, certa dose de ternura em toda parte: no baseball, onde ocupa a posição de arremessador e sempre recebe a bola lançada com maior violência, na construção de pipas, nas relações com seu cachorro Snoopy, nos contatos de jogo com as meninas. Devido aos insucessos, sua solidão torna-se abissal, chegamos a pensar que Charlie Brown é inferior. Daí a tragédia! Charlie Brown não é inferior, é absolutamente normal. É como todos somos. Como busca a salvação de acordo com as fórmulas propostas pela sociedade, caminha à beira do colapso. Contudo, como o faz com absoluta pureza de coração, sem nenhuma malandragem, a sociedade está pronta a rejeitá-lo na figura de Lucy, segura de si, empresária de lucro certo (ou não se lembram de suas consultas psiquiátricas armadas em meio ao campo aberto?!).

Além de Lucy, temos ainda Patty Pimentinha e Marcie, perfeitamente integradas (por integradas, leia-se alienadas), que vão desde a atitude hipnótica diante da TV até os jogos infantis e discursos cotidianos, atingindo a paz através de uma insensibilidade super sensível. Linus, ao contrário de Charlie Brown, de dedo na boca e cobertor recostado na face aparenta estar onerado de todas as neuroses. Individuou em seu cobertor, resquício da primeira infância (ou como Winnicott preferiu chamar de objeto transicional), o símbolo de uma paz uterina e de uma felicidade puramente oral. Mas tirem-lhe o cobertor e ele recairá em todas as questões emocionais que o assediam. Enquanto Charlie Brown não consegue construir uma pipa que não se enrosque em meio às árvores, Linus, produto aguerrido de uma sociedade tecnológica, revela de repente habilidades dignas de ficção científica: constrói jogos de extremo equilíbrio, atinge uma moeda em vôo com a ponta de seu cobertor, e por aí vai. Schroeder, o músico da turma, encontra paz na religião estética, sentado em seu pianinho de araque, tira melodias de complexidade transcendental. Em sua admiração por Beethoven, salva-se das neuroses cotidianas, sublimando-as numa loucura artística. É alvo de admiração de Lucy.

Há ainda muitos outros personagens que poderíamos nos deter: Pig Pen e sua inseparável sujeira, o enigmático e abandonado Woodstock, melhor amigo de Snoopy, a irmã mais nova de Charlie Brown, Sally, e o próprio Schulz que em sua última tirinha publicada após sua morte em fevereiro de 2000, se despede dos fãs e dos personagens.


"Caros amigos,
             Eu tive a honra de desenhar Charlie Brown e seus amigos por quase 50 anos. Foi a realização de minha ambição de infância.
             Infelizmente, eu não tenho mais a capacidade de manter o ritmo necessário para uma tirinha diária. A minha família não deseja que Peanuts seja continuado por mais ninguém, portanto eu estou anunciando a minha aposentadoria.
             Eu sou muito agradecido por todos esses anos, pela lealdade de nossos editores e o apoio maravilhoso e amor expressado pelos fãs da tirinha.
             Charlie Brown, Snoopy, Linus, Lucy... como eu poderia esquecê-los..."
                               Charles Schulz
    
A redução de mitos adultos a mitos da infância, de acordo com Eco (1976:287), permite a Schulz uma recuperação. As crianças tornam-se capazes de canduras e genuinidades que recolocam tudo em questão, filtram as impurezas e restituem um mundo que continua, apesar de tudo, delicadíssimo. As histórias de Charlie Brown e Snoopy agradam à todos, fascinam de igual intensidade os grandes, os mais sofisticados e exigentes e as crianças, como se cada um encontrasse aí algo para si. O mundo de Charlie Brown é um microcosmo, uma pequena comédia humana para todos os gostos. 

Aos poucos, ou vai ver seja exatamente isso o que tanto me encanta nas histórias de Charlie Brown, percebo que apesar de todos os insucessos que acumulei(amos) ao longo da vida (e os que inevitavelmente ainda virão), assim como Charlie Brown, nunca pude(mos) chamá-los de fracasso.

Se quiser saber mais:
ECO. Umberto. Apocalípticos e integrados. Trad. de Pérola de Carvalho. Coleção Debates (19), dirigida por J. Guinsburb. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Gêneros de Lego versus Lego de Gêneros

Autêntica questão edípica do menino (0:40') extravasando via "Lego só para meninos".




Real tomada de conscientização da empresa ou mais um jogo de mercado?

Durante a infância e certas passagens para a adolescência tive a oportunidade de brincar com Legos, mas como eram brinquedos caros nunca tive um. Daí sobrava a oportunidade de montar coisas nos Legos dos amigos que, sempre se encontravam já desmontados, com poucas indicações do que aquelas peças originalmente, formariam. Ou seja, se o conjunto das peças formassem uma nave, um barco ou um parque eu pouco (ou nada) sabia, pois tinha à disposição as peças misturadas que poderiam formar um ultra cidade venusiana com defesas contra o maldoso povo de Marte.

A menção de conteúdos aparentemente ambíguos (naves, barcos, parques, defesas...) não é ao acaso. Dependendo do contexto pode assumir condições masculinas, mas também femininas. Ou porque tive uma infância repleta de modelos comercializados que dicotomizavam o gênero, ou ainda porque as questões que os sujeitos passam enfrentam essa dicotomização. Quando o menino do vídeo exibe para a mãe o que ele fez, sustenta uma certa fase, expressa através da exibição das produções das crianças (desde as produções fisiológicas até Legos), quer seja menino, menina, nenhum dos dois, ou ambos. Contudo, durante a fase edípica a exibição de algo para os pais vai apresentar diferenças, uma vez que , ou seja, há um homem para o qual a Lei não se aplica e, por sua vez as meninas tem que lidar com outras demandas já que , não há uma mulher sequer para a qual a Lei não vale (cf. A mulher não existe ou A pele que habito).

Teorias à parte, que haja modelos representativos da masculinidade: ótimo! uma vez que se encaixam em conflitos próprios do masculino, mesmo que sejamos politicamente corretos e não presenteamos nossos filhos com brinquedos que simulam armas, nada impede que a própria mão faça a vez do revólver e vamos continuar a brincar de polícia e ladrão; que tenham modelos específicos do feminino: bom também! já que a feminilidade envereda por outros caminhos. O fato de fechar o pacote numa questão de gêneros, limita não só o potencial do produto como também do sujeito em usufruir segundo sua criatividade/inspiração. E, nos prendemos nos aspectos culturais, mais especificamente nas produções em série do mercado que vende modelos prontos de consumo (veja o termo indústria cultural, por exemplo, isto é, a abrangência do saber humano ligado à atividade econômica com fins comerciais), modelos pré-definidos que ostentam o que venha a ser homem/masculino/heterossexual e mulher/feminino/também heterossexual. E as exceções?! Ficam limitadas ao anonimato, passando a impressão de que se o fazem às escondindas, trata-se de algo inapropriado.

Sinto que façamos dos brinquedos, banheiros. Ou homem, ou mulher. Abre espaço para discussões, mas sobra pouca oportunidade para experimentar, inovar, criar, errar, escolher, desejar...